Com a idade que tenho, a
que se soma a minha curiosidade, acabo por ter histórias ou episódios que
aconteceram um pouco por toda a cidade: Lisboa.
E como agora está “na berra”
a Rua do Benformoso, aqui fica uma situação aí vivida, há coisa de meio século.
A minha namorada era adolescente
como eu. Aliás, frequentávamos o mesmo liceu, coisa impossível um ano e tal
antes, época em que o ensino era separado para rapazes e raparigas.
Pois esta minha namorada
tinha uma madrinha, já bem idosa. E era quase que obrigação a afilhada visitar
a madrinha com alguma regularidade. E, para visitar a madrinha, havia que ter
um pouco mais de cuidado com as roupas e as conversas. E nem pensar a afilhada
usar calças na sua presença. Que madrinha é madrinha e o respeitinho é muito
bonito.
Vivia a boa da senhora num
rés-do-chão de uma casa modesta e pequena na Rua do Benformoso. Rua estreita,
de prédios velhos, que começava (e começa) na Praça do Martim Moniz e terminava
(e termina) no Largo do Intendente. Nem o princípio nem o fim, principalmente
este, eram zonas que se recomendassem. Com negócios de contrabando e artigos de
origem duvidosa no seu início e tascos, pensões e prostituição no seu fim. Claro
que não se pode generalizar estes atributos por todos os que ali viviam ou
frequentavam, que boa gente por ali havia naturalmente, mas soqueiras e
ponta-e-mola ou faca na liga eram o pão-nosso-de-cada-dia.
Pois um dia fui formalmente
convidado para ir conhecer a madrinha da minha namorada. Uma espécie de
apresentação formal à família e mais importante que conhecer os pais, que eu já
conhecia. A aprovação da minha pessoa pela madrinha era a aprovação do namoro.
E eu lá fui, tendo cuidado
com o que vestia, mas sem fato ou gravata. Que naquela época era sinal de ser
do reviralho.
Admitido na casa, modesta
que era mas imaculada e cheia de bric-á-braque por tudo quanto é lado, não
faltando um santinho com candeia acesa e um canito de loiça, fui conduzido à
sala. E convidado a sentar-me numa cadeira de braços almofadada, a única, de
costas para a janela mas de frente para o televisor. A que não faltava o naperon
em croché com uma jarra com flores em cima.
A certa altura a boa da
senhora, creio que para ajudar a quebrar o gelo, sugeriu que eu pegasse num
cinzeiro de loiça que ali estava. Qualquer um, disse ela. E eram muitos. Em seguida
pediu-me que o virasse (estava vazio, claro) e que visse o que estava escrito. Se
bem me recordo das palavras, constava nele “Este cinzeiro foi surripiado do
restaurante qualquer-coisa”.
Achei estranho, mas ela
continuou, fazendo-me ver o que constava noutro, e noutro, e noutro ainda. Em seguida
os pratos, decorados ou de mesa. Em todos eles havia algo de semelhante
escrito.
Contou-me então que era
hábito trazer-se uma recordação dos restaurantes ou pensões por onde se passava
e que os donos mandavam escrever aquilo para tentar dissuadir, pela vergonha, o
surripanço.
E toda a decoração daquela
sala, a sala da madrinha, tinha essa origem. Por isso serem desirmanadas e de
estilos tão díspares todas aquelas peças.
Se a memória me não falha
voltei a casa da madrinha talvez duas vezes. Que as visitas seria uma vez por
mês ou a cada seis semanas e eu nem sempre podia ou queria. Quando o namoro
terminou não senti falta da madrinha, dos seus troféus ou da rua do Benformoso.
Quanto aos cinzeiros...
Hoje em dia o que não falta são lojas de recordações.
Pentax K1 mkII, SMC Pentax-m Macro 50mm 1:4
By me
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