terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Na Rua do Benformoso




Com a idade que tenho, a que se soma a minha curiosidade, acabo por ter histórias ou episódios que aconteceram um pouco por toda a cidade: Lisboa.

E como agora está “na berra” a Rua do Benformoso, aqui fica uma situação aí vivida, há coisa de meio século.

A minha namorada era adolescente como eu. Aliás, frequentávamos o mesmo liceu, coisa impossível um ano e tal antes, época em que o ensino era separado para rapazes e raparigas.

Pois esta minha namorada tinha uma madrinha, já bem idosa. E era quase que obrigação a afilhada visitar a madrinha com alguma regularidade. E, para visitar a madrinha, havia que ter um pouco mais de cuidado com as roupas e as conversas. E nem pensar a afilhada usar calças na sua presença. Que madrinha é madrinha e o respeitinho é muito bonito.

Vivia a boa da senhora num rés-do-chão de uma casa modesta e pequena na Rua do Benformoso. Rua estreita, de prédios velhos, que começava (e começa) na Praça do Martim Moniz e terminava (e termina) no Largo do Intendente. Nem o princípio nem o fim, principalmente este, eram zonas que se recomendassem. Com negócios de contrabando e artigos de origem duvidosa no seu início e tascos, pensões e prostituição no seu fim. Claro que não se pode generalizar estes atributos por todos os que ali viviam ou frequentavam, que boa gente por ali havia naturalmente, mas soqueiras e ponta-e-mola ou faca na liga eram o pão-nosso-de-cada-dia.

Pois um dia fui formalmente convidado para ir conhecer a madrinha da minha namorada. Uma espécie de apresentação formal à família e mais importante que conhecer os pais, que eu já conhecia. A aprovação da minha pessoa pela madrinha era a aprovação do namoro.

E eu lá fui, tendo cuidado com o que vestia, mas sem fato ou gravata. Que naquela época era sinal de ser do reviralho.

Admitido na casa, modesta que era mas imaculada e cheia de bric-á-braque por tudo quanto é lado, não faltando um santinho com candeia acesa e um canito de loiça, fui conduzido à sala. E convidado a sentar-me numa cadeira de braços almofadada, a única, de costas para a janela mas de frente para o televisor. A que não faltava o naperon em croché com uma jarra com flores em cima.

A certa altura a boa da senhora, creio que para ajudar a quebrar o gelo, sugeriu que eu pegasse num cinzeiro de loiça que ali estava. Qualquer um, disse ela. E eram muitos. Em seguida pediu-me que o virasse (estava vazio, claro) e que visse o que estava escrito. Se bem me recordo das palavras, constava nele “Este cinzeiro foi surripiado do restaurante qualquer-coisa”.

Achei estranho, mas ela continuou, fazendo-me ver o que constava noutro, e noutro, e noutro ainda. Em seguida os pratos, decorados ou de mesa. Em todos eles havia algo de semelhante escrito.

Contou-me então que era hábito trazer-se uma recordação dos restaurantes ou pensões por onde se passava e que os donos mandavam escrever aquilo para tentar dissuadir, pela vergonha, o surripanço.

E toda a decoração daquela sala, a sala da madrinha, tinha essa origem. Por isso serem desirmanadas e de estilos tão díspares todas aquelas peças.

Se a memória me não falha voltei a casa da madrinha talvez duas vezes. Que as visitas seria uma vez por mês ou a cada seis semanas e eu nem sempre podia ou queria. Quando o namoro terminou não senti falta da madrinha, dos seus troféus ou da rua do Benformoso.

Quanto aos cinzeiros... Hoje em dia o que não falta são lojas de recordações.

 

Pentax K1 mkII, SMC Pentax-m Macro 50mm 1:4


By me

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