domingo, 3 de fevereiro de 2019

Fedon




A morte é um dos três momentos importantes de um individuo. Os outros dois são o nascimento e o casamento.
E se estes são motivos de alegria, para o próprio e/ou para os familiares, já a morte é, regra geral, um momento difícil e de tristeza. Porque resultou de sofrimento e porque os sobreviventes sentem a sua falta.
Estes três momentos são vividos em conjunto, cerimonialmente. Para além dos sentimentos dos directamente envolvidos, a sociedade assim o organiza e há, quanto a mim e não só, motivos para tal. Motivos materiais que remontam a muito longe:
A apresentação da criança (recém-nascido ou já infante) para mostrar ao mundo quem herda. Terrenos, rebanhos, negócios; A declaração de união ou casamento para mostrar ao mundo que os bens de ambos se juntaram. Terrenos, rebanhos, negócios; A cerimónia fúnebre para que o mundo saiba que os seus bens pertencem aos herdeiros.
Por muito cínico que isto pareça, estas são as razões para se fazerem desses três momentos reuniões de parentes e amigos, de juntar um razoável número de pessoas em torno de eventos que são muito pessoais, alguns de alegria, outros de tristeza.
Claro que a religião – o conceito do divino e os medos do inexplicável – vieram ocupar um lugar de destaque nestes momentos, reclamando para si – para a organização – o papel de regulador das cerimónias, de testemunha dos eventos e sancionador das consequências. Quer se trate de um ente incorpóreo, com várias cabeças ou braços ou à imagem e semelhança da zoologia.
É de acordo com a teologia que as cerimónias decorrem. Introduzindo o recém-chegado na comunidade e atribuindo-lhe uma identidade, vinculando os noivos a um compromisso e desejando uma vida para além da morte tranquila e feliz. E depende das tradições religiosas e dos conceitos o tipo de celebração.

A imagem, tanto a pintura quanto a fotografia, não se exclui destas celebrações. Fazem-se os registos dos baptismos e casamentos, sendo quase que uma obrigação haver este registo pictórico. Como se a imagem fosse o testemunho indiscutível. E negócio rentável e apetecido.
Já no funeral as coisas são diferentes.
Não queremos, em regra, registar os momentos tristes. Como disse alguém “Quando ris, o mundo ri contigo, quando choras, choras sozinho”.
E apesar de na maioria das confissões religiosas a morte ser uma passagem para algo melhor, não ficamos com esse registo porque nós próprios, que ficaríamos nas fotografias, não estamos felizes ou sorridentes. E ninguém quer retratos ou registos da infelicidade.
Sugiro que procurem nos vossos arquivos, nos vossos livros e nas vossas memórias imagens de funerais ou velórios. Que não as feitas para os media ou as dos filmes. Talvez não encontrem nenhuma.
Por isso mesmo, fiquei particularmente surpreendido quando, um destes dias, vi uma fotografia de uma cerimónia fúnebre. No caso, o último adeus perante o corpo, antes de fechada a urna. Uma fotografia privada, que não para jornais, incluindo um vislumbre do defunto, o cônjuge e os amigos próximos. Uma fotografia que foi feita não sei por quem mas divulgada pelo cônjuge.
Não será algo comum. Eu diria que será algo de raro, muito raro. Mas… Mas é aqui que a coisa se complica.
A raridade da imagem prende-se com a cultura em que o acontecimento se desenrola. Com a tristeza individual e colectiva e a perspectiva do que sucede depois da morte.
Para os chamados “ocidentais” tal imagem poderá ser chocante. Quase que indigna por violar uma privacidade absoluta de um momento muito difícil. Para outras culturas, para outras fés, para outros pensamentos, pese embora a dor da ausência, será uma despedida tão suave quanto o possível, um “até já” quase certo.
Não creio que volte a ver tal tipo de imagem. Eu (nós), que vivemos no mundo ocidental, de cariz cristão. Pelo menos uma imagem feita pelos próximos do defunto.

A fotografia, mais que o registo de uma sociedade, nos seus usos e costumes, é ela mesma parte sociedade, integrando os usos e costumes.
Podemos – nós os fotógrafos – colocarmo-nos à margem, como voyeurs que somos, alienarmo-nos do nosso do nosso papel de parte integrante da sociedade. Mas não o conseguimos.
Enquanto a fotografia for feita por humanos – e ainda bem que o é – serão sempre as emoções e as culturas dos fotógrafos que nela estarão espelhadas, com tanto ou mais impacto que aquilo que elas registam explicitamente.

Nota adicional: Não me sinto nem autorizado nem com coragem de aqui mostrar a fotografia que gerou todo este perorar.
Fica apenas um grafismo e os meus sentimentos para com quem a publicou.



By me

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