quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Feitiços e feiticeiros



O assédio a quem passa para um qualquer negócio não é coisa nova.
Tradicional será o convencer os passantes, turistas de preferência, a entrarem neste restaurante ou naquele espectáculo. De revista ou de circo.
Igualmente tradicional o tentarem convencer o incauto transeunte a aderir a uma empresa de telecomunicações. Televisão, telefone, internete.
Começa a ser tradicional o tentarem convencer o ingénuo passante a contribuir para uma hipotética causa simpática (idosos, sem abrigo, animais, deficientes) comprando um dos objectos inúteis ou quase que trazem consigo.
Quem for observador e passe com regularidade nos mesmos locais, acabará como eu: a conhecer as caras destes técnicos de vendas de rua, uns mais eficazes que outros, uns mais cordiais, outros nem tanto.
E se for gente de meter conversa, a troco de quase nada, acabará por saber alguns detalhes do que vendem, das suas metas ou objectivos e aperceber-se que o treino que têm, com toda a certeza feito por quem sabe do ofício, mas a quem escapa alguns detalhes básicos, de meter dó.
Porque faz parte do manual de comunicação básico que não se conversa com ninguém com as mãos uma na outra à frente do corpo ou de braços cruzados. Na linguagem corporal, quase que universal, este é um gesto que é interpretado inconscientemente como uma barreira, algo que impede a fluidez e facilidade de comunicação.
De igual modo é sabido que ao falar-se com duas ou mais pessoas o olhar se deve dividir por todas elas, talvez mais demorado em quem seja mais permeável aos argumentos, mas deverá abranger todos os presentes. Caso contrário os excluídos nessa ligação visual cedo se cansarão e, no caso de abordagem de rua, arrastarão quem está em conversa, afastando-o do negócio.
É igualmente recomendado a quem tenha um pouco mais de dificuldade no falar ou passar uma ideia o recurso a uma “muleta”. Um objecto que, sendo familiar e estando na mão, nos dá tranquilidade. E é frequente isso ser uma caneta, já que há papeis a preencher ou gráficos a realçar. Mas por favor: Se forem pessoas de gesticular e se a distância ao interlocutor for reduzida, não usem a caneta na mão que mais se movimenta. Para quem escuta, e a essa distância, uma caneta que dança à frente do rosto é interpretada como algo ameaçador, levando a recuar um pouco. E, ao recuar, a ter o seu espírito na defensiva, muito menos permeável aos argumentos de quem vende do que se desejaria.
E, já agora: não abordem do mesmo modo novos e velhos, eles e elas, solitários, grupos ou casais. Para cada um há modos diferentes de abordar, mesmo que todos eles sejam mais formais ou mais leves e brincalhões.
Mas, e acima de tudo, percebam se a abordagem vai interromper algo que não deve ser interrompido: uma conversa densa entre duas pessoas ou uma comunicação electrónica, texto ou voz. Nestes casos é garantido que não conseguirão chegar à fala e correm o risco de alguma hostilidade da outra parte.

Para quem tenha tempo e paciência, é um exercício engraçado ver estas pessoas a trabalhar. E perceber as técnicas de abordagem de cada um, algumas merecedoras de prémio, outras que, de tão fraquinhas ou tímidas, chegam a ser confrangedoras.
O cúmulo da diversão está em ver como reagem estes vendedores, por vezes verdadeiras pragas urbanas, quando lhes sai na rifa um tipo de barbas, com tempo, paciência e patuá suficiente para lhes vender algo que não a troco de dinheiro: ideias, sugestões, observações, meras larachas… Conversa que não da treta mas sempre antecedida do aviso “não vou comprar nada, mas se quiser conversar…”.
Os que não conhecem o figurão e caem na armadilha só muito a custo dela saem. Por vezes sou eu que, já condoído, os mando continuar o seu trabalho. Outras é um colega que, ou porque já me conhece ou porque se apercebe do que se passa, que vem em seu socorro.
Um destes dias cruzei-me no Chiado com um destes grupos meu conhecido de outras zonas da cidade.
Trocámos um piscar de olhos e uma laracha à distância e eu segui alguns metros, ficando depois discretamente a vê-los trabalhar. Usavam caneta mas na mão esquerda, junto com os papéis. A direita (a que gesticulava) aberta, sem nada que pudesse agredir ou estivesse escondido e com a palma da mão para fora, num gesto de franqueza.

Alguns aprendem.

By me

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