sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Seria obsceno fotografar




Merda! É a única palavra que me vem à cabeça. Merda!

 

Pediu-me para uma sopa e fomos por ela. E disse-lhe que pedisse o que quisesse, já que não sabia se naquele snack de estação e àquela hora ainda haveria sopa. Já não e olhou-me, perguntado, se poderia ser um salgado e um sumo.

Disse-me depois, já no cais e enquanto esperávamos pelo comboio, que queria mesmo era uns trocos para poder pagar o quarto. Há três noites que estava a dormir num vão e não sabia se ainda lá estaria a roupa.

O que lhe faltava era menos ainda que o que eu havia recebido de troco, ao balcão. Dei-lho.

Olhou para mim, bem nos olhos pela primeira vez, e disse-me:

“Sabes? Isto hoje não é para mais nada. É mesmo só para o quarto. Estou tão cansada!”

“Não te perguntei nada, pois não? E ainda não me deste motivos para que não acreditasse em ti, pois não?”

Sorriu ainda mais.

E ficámos mais um nico à conversa, sobre a sua família lá na terra, os seus filhos e as idades, as reacções do pai e da mãe quando lá vai…

A dado passo, e antes de subirmos para a composição, mete a mão no bolso do casaco coçado e diz-me:

“Olha! Já vi que fumas. Não queres ficar com este maço? Está quase cheio. Deram-mo hoje.”

Mostrei-lhe os meus e disse-lhe que preferia fazê-los eu, obrigado.

 

Merda! Poucas vezes me ofereceram algo de tão valioso. Merda!

 

Quando, uns vinte minutos depois, se levantou do seu banco para sair na estação dela, debruçou-se e deu-me dois chochos, dizendo baixinho:

“Vemo-nos por aí.”

Dei-lhe uma palmadinha no ombro e só me ocorreu dizer-lhe de resposta, também baixinho:

“Porta-te bem!”

Ficou no ar o seu sorriso, triste, e o seu odor.

Talvez que por isso ninguém tivesse ocupado o seu lugar no banco, não sei.

E talvez que nos vejamos por aí.

 

Nota: este episódio aconteceu e foi escrito numa fria noite de janeiro, há sete anos.

Fui-a vendo por aí, com umas trocas de sorrisos e algumas palavras, bem como alguns pedidos de moedas. Naquela estação ou nos corredores de comboio.

O intervalo entre cada encontro foi aumentando até que a deixei de ver de todo. Há anos que a não vejo. Espero, sem muita convicção, que se tenha portado bem. 



By me

Sem comentários: