Há uns trinta
anos, mais coisa, menos coisa, foi-me pedido para fazer uma imagem truncada de
uma fotografia de um fotógrafo de renome.
Eu estava
integrado numa equipa que fazia um trabalho de ficção que era dirigido por uma
conhecida realizadora de cinema e televisão portuguesa.
Perguntei à realizadora
se se tratava de uma análise critica da fotografia ou do fotógrafo. Disse-me
que não. Perguntei ainda se a imagem que queria que eu fizesse corresponderia à
subjectividade de algum das personagens do trabalho que estávamos a fazer. Também
me disse que não. E eu disse-lhe que não fazia o que me pedia!
Disse-lhe que não tínhamos
nós, eu ou ela, o direito de subverter o trabalho do autor para nossa satisfação.
Que seria o mesmo que alterar a ordem dos versos dos Lusíadas ou repintar a
Capela Sistina ou reeditar “Os Pássaros”.
Que não tínhamos
autoridade moral, criativa ou autoral para subverter o trabalho original. E que
eu não o faria!
Foi o “fim da
picada”, o puto colocar em causa a decisão de um realizador. E vieram vários
convencer-me, ou tentarem convencer-me, do contrário. Não o conseguiram.
Resultado? Fui afastado
daquele trabalho em particular e substituído por outro sem problemas éticos,
que fez o que lhe foi pedido. E durante uns tempos não fui convocado para
trabalhos de ficção, os que dão mais gozo fazer.
Passa-se
exactamente o mesmo com os editores ou designers de livros:
Entendem que podem
espalhar os conteúdos a publicar pelas superfícies virgens das páginas,
respeitando ou não o trabalho original. Por vezes, com a forma como dividem os
trabalhos (textos ou imagens) desvirtuando os originais.
E quando vejo
reproduções de fotografias, pinturas, esculturas ou outras obras, divididas por
duas páginas, como neste caso, “salta-me a tampa”!
A união das páginas
quebra por completo o ritmo da sequência dos elementos. O dividir um espaço uno
em dois contíguos faz com que as evidências ou ocultações de elementos, as
linhas de fuga, os equilíbrios, as forças, se dividam em dois rectângulos, no
lugar de um só, com leituras e interpretações distintas.
Indo mais longe,
ao olharmos para duas páginas contíguas, estas em regra formam um ângulo entre si,
impedindo que olhemos na perpendicular ambas. E criando novas perspectivas, com
novas leituras.
Mais ainda: é raro
vermos duas páginas contíguas num mesmo plano, ficando uma ou ambas
ligeiramente abauladas. Uma vez mais, novas leituras surgem ao observar-se numa
superfície curva aquilo que foi concebido para ser visto num plano.
Por fim, é raro
que as condições de luz em que nos encontramos não provoquem reflexos numa ou
noutra página. E aquilo que era para ser visto de uma só vez acaba por ou não
ser visto porque tapado por reflexos ou visto em momentos diferentes, na medida
em que alteramos a posição do livro para fugirmos desses mesmos reflexos.
Vem tudo isto a
propósito de ter estado na 7ª edição da feira do livro de fotografia. E de ter
constatado que edições de autor, com os respectivos autores presentes,
continuam a pecar por exibirem os seus trabalhos a duas páginas.
Emiti a minha
opinião junto de vários (editores, designers e fotógrafos) em momentos mais
breves ou um pouco mais longas. E não sei se consegui fazer passar a minha
mensagem.
Mas uma coisa é
certa: enquanto consumidor de obras fotográficas, evito comprar livros que mas
exibam a duas páginas. As únicas excepções passam por as obras em causa serem tão
raras que eu sei que não as encontrarei de outra forma.
Não sei o que se ensina
nas escolas de design. Mas se não se ensinar a ter o máximo respeito pelos
autores e pela forma como os trabalhos serão exibidos e consumidos, mais vale
fecharem-nas e fazerem um auto de fé aos seus professores.
Nota adicional: a
imagem aqui exibida não é de nenhuma obra que tenha visto nessa feira.
Trata-se de uma
fotografia feita por Patrick Zachmann, fotógrafo da conceituadíssima Agência
Magnum, feita na Geórgia, URSS, em 1989.
Tenho-a num livro
dedicado a essa agência fotográfica, que a exibe a duas páginas como se vê.
Apesar de o
scanning não ter sido dos melhores, não creio ser necessário acrescentar mais nada
aos argumentos acima expostos.
By me