Bem... na verdade e como
toda a gente tive dois avôs e duas avós.
Os meus antepassados que
contam para esta história viviam numa casa de agricultura, na extrema de uma
aldeia do interior algarvio.
Quando eu era pequeno
costumava ir até lá uma temporada nas férias de verão. E vivia por uma semanas
aquela pacatez de uma aldeia envelhecida, numa casa um pouco afastada e onde
não havia electricidade.
A minha avó pouco saía de
casa. Entre a sua idade, os afazeres no tanque, na cozinha, na horta, com as
galinhas, coelhos e porcos e outras tarefas agricolas domésticas, pouco lhe
sobrava para ir à aldeia, coisa mais ou menos reservada a meu avô. Mesmo quando
vinha o homem do peixe, na sua motoreta com cestos de vime e a sua buzina que
ecoava longe. E que parava só no largo da aldeia.
Mas a sexta-feira à noite
era sacrossanta para a minha avó. Juntava-se com outra aldeã na casa de uma
terceira, e ali aqueciam o forno, amassavam a farinha e deixavam-na a levedar,
para o cozerem no dia seguinte. Entre o que faziam e o tempo de levedar, era
tempo de se falar de vizinhos e conhecidos, dali ou de outra aldeia.
No fim de semana havia pão
fresco lá em casa, com manteiga ou compota que era um pitéu. E esse pão, feito
uma vez por semana, durava até à cozedura seguinte, sempre comestível mesmo
para os menos bons dentes dos velhotes.
E se a minha avó fazia o
pão, o meu avô cortava-o. Teriam feito essa distribuição de tarefas haveria
muito, que nunca vi a minha avó a usar a faca. Esta faca.
Por aquilo que soube, teria
sido prenda de casamento, não sei se com outros talheres. Mas aquela, com cabo
de alpaca a que chamavam a prata dos pobres, nunca teve outro uso que não fosse
o de cortar o pão. Apenas isso e durante dezenas de anos.
O formato da lâmina bem
atesta a quantidade de vezes que o seu gume foi recuperado. Numa pedra de
amolar bem guardada num pano na despensa, tão gasta quanto esta faca e outras
que por lá havia.
Nem numa nem na outra o
catraio que eu era estava autorizado a pôr a mão. Que, ao fim de uma semana a
casca do pão começava a dar sinais e a faca haveria de lhe poder entrar. E se o
“menino” tentasse, sempre haveria a possibilidade de lá deixar um bife.
Quando os meus avós foram
para um lar, a faca lá ficou, suponho que na gaveta direita da mesa da cozinha
onde sempre a conheci, mas sem cortar nem ser afiada, ganhando com isso sinais
de corrupção na lâmina. Quando faleceram quis ficar com ela. Não só porque dela
tenhos boas recordações mas também porque passei a poder cortar o pão com ela,
finalmente. Coisa que não faço, que a lâmina está tão fina que tenho receio de
a usar.
Tenho-a ali, numa
prateleira e bem à vista, mesmo com o tempo a marcar o ferro, que a alpaca está
incorrupta.
Pentax K1 mkII, Tamron SP Adaptall2 90mm 1:2,5
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