quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Post-morten




Foi ontem. De conversa com uma senhora brasileira que trabalha num café que passei a frequentar, falei-lhe de um bolo de que gosto muito: Garibaldi.

Franziu a testa, dizendo que não conhecia tal bolo, mas que o nome não lhe era estranho. Claro que não lhe era estranho, já que Garibaldi, para além de italiano e herói na Itália, foi também um herói no Brasil.

Falámos de guerras no Brasil e falei-lhe de uma revolta popular – a Guerra dos Canudos – que ela desconhecia por completo. Tratou-se uma uma revolta popular estado da Bahia, liderada por António Conselheiro, mesmo no final do séc. XIX.

Os revoltosos, que reclamavam pelo uso das terras abandonadas, foram várias vezes atacados pelo exército nacional e só um assalto muito em força os venceu. Fala-se de muitos milhares de mortos, em combate ou já prisioneiros, homens mulheres e crianças. Incluindo o seu líder.

Sei deste episódio por uma fotografia.

António Conselheiro foi desenterrado duas semanas depois de sepultado para que fosse fotografado por um fotógrafo do exército e mostrado à população brasileira para tivessem a certeza de que estava morto e a revolta acabada.

Só me recordei dos nomes uma hora depois da conversa. Memorizei-os para lho contar no café.

Hoje, ao tentar organizar os meus livros tropeço num: “Para entender la fotografia” de John Berger, sendo a minha versão a publicada pela editora Gustavo Gili. Apesar de estar bem misturado com os demais, fazia parte da “pilha para ler” e decidi que era ocasião de lhe pegar.

Trata-se de um conjunto de ensaios ou reflexões sobre fotografia e o seu autor é um dos meus favoritos.

O primeiro ensaio é sobre a última fotografia de Che Guevara, já morto e estendido numa mesa no instituto de medicina legal boliviano.

Também esta fotografia foi usada pelas autoridades sul-americanas, que não apenas as bolivianas, com o intuito de pôr em prática o adágio “Morto o bicho, morta a peçonha”.

Não será, certamente, a mais famosa dele. Que os mitos, as filosofias e o marketing se encarregaram de o imortalizar com outra. Bem mais agradável, diga-se de passagem.

Esta coincidência de, em menos de 24 horas, lidar com duas fotografias post morten oficiais e com intuitos de propaganda, recordou-me de algumas outras equivalentes.

A comuna de Paris, em 1871, foi uma revolta popular na cidade de Paris. O exército governamental terminou-a com um verdadeiro banho de sangue. Em combate e com as execuções posteriores dos comunnards capturados.

Eugéne Disdéri fotografou os seus corpos nos caixões, em grupos de dez ou doze. Mais que “reportagem”, incipente na época, foram fotografias documentais que as forças do regime usaram depois para difundir pela França mostrando o que acontecia a quem se revoltasse contra o poder oficial.

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Se o fotógrafo é o taxidermista do tempo, como disse o mestre, a fotografia também pode ser usada, ao perpectuar a morte, como uma ameaça ou um fantasma para assombrar os que se atrevem a pensar ou agir fora da caixa, pondo em causa os poderosos ou os poderes instituídos.

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Nota adicional – As fotografias acima descritas, além de constarem na minha biblioteca, encontram-se mais ou menos com facilidade na web. É só procurar.

 

Pentax K1 mkII, Tamron SP Adaptall2 90mm 1:2,5

By me

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