terça-feira, 21 de janeiro de 2020

À lá minuta, Minutero, Lambe-Lambe



Em tempos tive uma pergunta para a qual não sabia a resposta, por muito que lesse:
Quem se quereria deixar fotografar por um desconhecido, gratuitamente, com uma câmara de outros tempos e ter a sua fotografia publicada on-line.
Encontrei algumas respostas para estas perguntas e muitas mais perguntas que não esperava ou em que nem sequer havia pensado.
Foram três anos de trabalho de campo intenso, usando todos os dias que o meu trabalho permitia e que as condições atmosféricas não impediam.
Usei um dispositivo que construí, assemelhando-se às antigas "à-lá-minuta" mas recheado com tecnologia de ponta: uma câmara digital e uma mini impressora de jacto de tinta que funcionava com bateria. Levei mês e meio entre o ter encontrado a peça vital (a impressora minúscula) e o começar o trabalho com ela pronta. Houve que inventar peças, adaptar outras, construir mecanismos, encontrar soluções viáveis e descobrir um local frequentado por diversos tipos de pessoas que ali fossem sem pressas. Naturalmente que um jardim.
Fiz quase milhar e meio de fotografias e uns 20% delas ficaram em privado por decisão dos fotografados.
Tive várias justificações para tal, sendo que as duas mais originais passaram por magia negra uma e "traições" conjugais outra.
Tive gente dos cinco continentes à frente da minha objectiva, de todas cores, opções religiosas, níveis culturais e limitações físicas. Para já não falar nos níveis económicos, que houve gente muito rica e gente com fome. Gente sã de mente e gente não tão sã de mente.
O mais difícil foi aceitarem serem as fotografias gratuitas, que me disseram que nada na vida é de borla. Mas que se calaram quando lhes disse que  não estavam a pagar para ouvir aqueles pássaros ou os risos daquelas crianças, nem para aquecerem os ossos naquele sol. Alguns fizeram questão de fazer algum tipo de pagamento, como objectos diversos, café, água, gelados, bolos... houve mesmo quem decidisse deixar-me a mão cheia de trocos miúdos, o último dinheiro que tinham e que fora o que restara das compras no supermercado. Eles, que viviam da esmola alheia. Fui principescamente pago, dessa vez.
Fui surpreendido de diversas formas neste projecto. Com o que ouvi, com o que vi, com o que pensei... Mas a principal surprea foi o ter fotografado tão poucos namorados. E todos já para além de meio da vida, alguns mesmo em fim de vida.
Deduzi eu, e não passa de uma dedução, que nos tempos que correm, tal como antigamente, uma fotografia formal feita por um "profissional" equivale a um compromisso grafado no papel. E se os compromissos de afectos são cada vez mais difíceis de fazer e/ou manter, por outro lado toda a gente, mesmo há quase vinte anos, tem um modo de fotografar digitalmente. E os momentos com o/a "mais-que-tudo" acontecem informalmente em festas e outros eventos equivalentes.
Apesar disso, ainda acabei por fazer, em dois casos e fortuitamente, "AS" fotografias de casamento: um que aconteceu ali mesmo, no coreto do jardim, o outro celebrado creio que na embaixada daqueles migrantes de Leste, que vieram de propósito do Algarve para o acto e que se passeavam por ali após a cerimónia.
No meio de toda esta aventura, creio que fui eu que mais lucrei: que se cada um ou cada grupo ficou com uma recordação, efémera ou não, eu fiquei com um sem fim de histórias e conhecimento do género humano. E algumas recompensas bastante tempo depois.
Uns sete ou oito anos após ter terminado o projecto sou abordado na rua por um casal na casa dos vinte e poucos anos. Pergunta-me ele se eu seria o fotógrafo do jardim da Estrela, o que confirmei. E ele, voltando-se para ela, diz-lhe:
"Vês? Eu bem te dizia! Aquela fotografia que eu tenho lá no espelho, dos tempos do liceu, foi este senhor que a tirou. Ali dentro, perto do portão e do coreto."
Saber que, passados aqueles anos, aquela fotografia feita de brincadeira e de borla ainda era suficientemente importante para estar em exibição em casa...
Pouco importa se a câmara era uma "fraude temporal" ou se os resultados eram em cor ou em cinza. Os fotografados dão uma relevância ás fotografias que lhes fazem bem maior que aquelas que os fotógrafos dão às que fazem.

Na imagem? Eu, a minha câmara e uma mocinha tailandesa em turismo pela europa, que fez questão de, cumprida a função do fotógrafo, ser fotografada com ele e a sua câmara.

By me

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