sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Alma negra



Ela tinha uns olhos bonitos. Caramba! Como eram bonitos os seus olhos!
Não apenas a cor, de um verde pálido, aquoso, quase transparente, como o formato, de um amendoado estranho, suave, quase redondo não o sendo. Sem pinturas ou enfeites. Bonitos de ficar a olhar, mesmo naquele autocarro já apinhado de gente.
Em condições normais, na rua, com alguma calma e luz, certamente que a abordaria para os fotografar. Deixar escapar uns olhos daqueles seria pecado. Mas…
Mas o treme-treme do autocarro, o facto de aqueles olhos mal terem reparado em mim, divididos que estavam entre o conversar com a senhora sentada à sua frente e o telemóvel no facebook… difícil seria obter uma imagem daqueles olhos lindos de morrer.
E se os olhos são o espelho da alma, estes seriam bem mentirosos. Que toda aquela beleza de olhos era bem o oposto daquela alma negra e feia.

Sentada que estava num dos bancos reservados a pessoas com necessidades especiais, bem que viu o idoso que entrou de muletas. E rapidamente desviou o olhar para a tecnologia que tinhas nas mãos.
Tal como os belos olhos bem se fixaram, por uns instantes, naquela senhora com uma menina ao colo. Mas foram atraídos por um qualquer detalhe na tarde quase escura lá de fora.
Tal como varreram o possível de ver no meio de toda aquela gente o outro já velho e também de muletas que se agarrava com dificuldade a um varão do chocalheiro autocarro.
E foi com uma nítida raiva que olhou para a velha cigana sentada a seu lado, toda de negro profundo incluindo o lenço na cabeça, quando ela lhe deu uma cotovelada e lhe disse, bem alto: “Dê lá o lugar ao velhote! Não vê que ele mal se aguenta de pé?”
A resposta foi atabalhoada, com um mal pronunciado “Não tinha visto”, mas lá se levantou. Gesto inconsequente, que o lugar foi recusado com o argumento de que iria sair na paragem seguinte e era mais fácil nem se sentar.
E aqueles olhos lindos, bem como o seu rabo pesado e alma feia, voltaram a ocupar o banco, sem se preocuparem com outros idosos, de cabelos alvos, que se apertavam e encostavam uns aos outros no corredor apinhado.
Irritou-me! Mesmo! Um olhar bonito, mas bonito mesmo como aquele, não desculpa o desprezo pelos demais. Principalmente se ocupando um lugar reservado.

Aconteceu sairmos na mesma paragem minutos depois. E eu, irritado que estava, achei que não podia perder a ocasião.
Afivelei o meu mais charmoso sorriso e, sacando da câmara do bolso, abordei-a.
“Desculpe. Posso fotografar os seus olhos? Só os olhos!”
“Aaaah… Não, obrigado. Estamos com pressa.” E seguiu com a talvez mãe, talvez tia.
Tal como eu. Esforçando-me por manter o sorriso, insisti:
“É que, sabe, gosto de fotografar olhos bonitos. E os seus são lindíssimos. Posso?”, ao mesmo tempo que exibia a câmara.
Abrandou um pouco o passo, olhou para mim e insistiu meio sorrindo:
“Obrigado, mas estamos com pressa.”
“Mas é que gosto mesmo de fotografar olhos bonitos. Bonitos como os seus. E gosto mais ainda quando escondem uma alma negra e feia como a sua!”
Aqui estacaram ambas e enfrentaram-me. E continuei, mantendo o sorriso mas esfriando o tom de voz:
“Que bem vi como fez o possível por não ver quem precisava do lugar sentado que ocupava. Tal como vi o olhar que lançou à velha cigana quando ela a obrigou a levantar-se. E agora, vendo-a a caminhar sã e escorreita como se espera das suas vinte pouco primaveras, que não sei se invernos, ainda mais lhe reconheço a fealdade da sua alma.
Ainda tentou responder algo, mas não deixei, continuando:
“Mas, no fundo, ainda bem que não deixa. Agora já não sei se quero ter algo seu, mesmo que uma fotografia dos seus bonitos olhos. Sabe que mais? Boas festas, ainda que não merecidas!”
Dei meia volta e afastei-me.
É que, no fim de contas, nem sei se ela merecia ou se entendeu o responso. E se eu continuasse, talvez que viesse a recorrer a termos menos urbanos.


Quem vê caras – ou olhos – não vê corações. E estes foram a alma negra deste natal.

By me

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