quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Condenado



Faz tempo que este coitado está condenado.
Creio que o mais difícil de resolver terá sido o desalojar do comércio no piso térreo, que as habitações há muito que estavam vazias. E com janelas abertas ou partidas como se vê.
Acredito que a sua estrutura esteja em mau estado. Vetusto que é, deve remontar ao início da urbanização destas “avenidas novas” da cidade.
Dirão os menos observadores: “Não tem nada de especial. Uma fachada lisa que se prolonga até à esquina e faz a curva, sem elementos que o distingam de tantos outros pela cidade ou país.”
Estão enganados.
Se observarem bem, cada um dos pisos tem a fachada diferente dos demais.
Pela disposição das janelas e porta-janelas, o interior será semelhante. Com variações na luminosidade, naturalmente.
A diferenciação dos pisos no seu exterior é algo de importante, gostemos ou não da forma como é feito.
Sendo certo que o ser humano é gregário, também é territorial. E a identificação do território, a afirmação “é meu” é vital para muitos. A simples colocação por parte dos residentes de cortinas, vasos ou outros objectos não é gratuita mas antes uma forma de dizer “esta janela é minha”. Ou de ajudar a identificar, perante terceiros, onde se reside.
Quem desenhou e construiu este edifício, destinado maioritariamente a habitação, considerou isto. Ou conscientemente ou porque era o hábito de então.
A assimetria das varandas e sacadas, as pequenas variações nas respectivas cantarias são disso evidência, mesmo que só tenha dois modelos ou desenhos de cada. Para reduzir custos, suponho.
Consigo imaginar alguém a descrever a outrem a janela do seu quarto: “Onde tem quatro varandas, é a segunda.”
Poderão os estetas de hoje pouco ou nada gostar destas fachadas irregulares nos detalhes, indo procurar a uniformidade, a descaracterização territorial para baixar custos e todos nivelar por igual. Edis, arquitectos e donos de obra gostam de ver monovolumes, como que “stencis” residenciais.
Por mim, gosto de ver fachadas que, tendo características próprias, defina residências, espaços pessoais, famílias com as suas próprias características.
Não sei o que aqui irá acontecer.
Talvez que seja bem mais barato a demolição e construção de raiz que o aproveitar as paredes exteriores. E sabemos que a construção civil, com honrosas excepções, se pauta pela relação qualidade/custo.
Acho que ficaremos todos bem mais pobres se esta fachada desaparecer, ajudando a descaracterizar e a desaparecer a memória da cidade que foi.
Que se estas são tecido vivo, pulsante e evolutivo, não deve o seu passado ser apagado sistemática e levianamente.
Indo mais longe, consigo imaginar que onde existe um edifício habitacional, ainda que neste estado, venha a surgir algo relacionado com hotelaria ou outros serviços.
Ou, tão mau quanto isso, um edifício habitacional de muito alto custo, reservado a classes mais que endinheiradas que, sabemos, não habitam o espaço público mas antes se reservam ao interior das suas habitações e outros espaços reservados. E, com isto, retirar das ruas e do espaço comum, os cidadãos, fazendo “morrer” a cidade e as suas características.
O investimento na hotelaria e restauração tem sido grande, na ilusão do “boom” turístico.
Quando Lisboa deixar de ter as suas características próprias e for apenas mais uma urbe estereotipada, como tantas outras pelo mundo, o que fará atrair o turismo? E o que acontecerá aos investimentos apressados e quase caóticos de hoje?


Gosto deste prédio, como de tantos outros equivalentes na cidade. Matando-o, matam um pouco de mim. E de todos nós.

By me 

Sem comentários: