sábado, 15 de agosto de 2009

À fé de quem sou


Já passava das duas e meia da tarde. Tinha estado com o horário da madrugada, nesse dia prolongado por causa de férias, tinha acabado de passar um autocarro, implicando mais uns bons 20 minutos de espera, e estava um calor abrasador.
Enquanto tentava, em vão, encontrar uma sombra fresca sob o abrigo da paragem, uns metros mais acima pára este carro.
Bolas, pensei. Porque raio não se ficou no recorte de estacionamento e teve que vir para cima do passeio?
E, apesar de o espaço deixado livre para os peões ser bem mais que suficiente, achei que seria mais um caso a registar. E fi-lo, vigiado pelo olhar franzido do ocupante da viatura, que nunca dela saiu.
Preparava-me para sinalizar o autocarro, que entretanto já se entrevia ao cimo da avenida, quando um outro condutor resolveu irmanar o que se vê na imagem. Mas, mais que igualar, entendeu que o deveria suplantar e subiu o passeio com as duas rodas da frente e uma de trás, ocupando todo o passeio. Entre o pára-choques e o muro não caberia uma mão-travessa.
Não bastava ter tido uma semana de me levantar às 3.30H; Não bastava estar um calor perto do infernal; Não bastava ter tido uma desavença com a chefia nesse dia. Tinha que vir este com este comportamento!
Mandei às urtigas o autocarro, abeirei-me da janela do condutor, saudei com uma continência quase regulamentar e pedi-lhe que abrisse o vidro que lhe queria falar. E perguntei-lhe:
“Não sabe que não pode estacionar em cima do passeio?”
Com um sorriso trocista, respondeu-me:
“Não posso, não, que já cá estou. Não devo!”
A piada, de tão velha que é, perdeu a graça e assumiu foros de provocação. Eu, que já estava zangado, encontrei-me num limbo entre isso mesmo e a fúria desmedida.
“Vou repetir, para o caso de não me ter entendido: Não sabe que não pode estacionar em cima do passeio?”
A moça que vinha sentada no banco de trás, indicando a senhora sentada ao lado do condutor, afirmou pela janela:
“É que ela é deficiente!”
Em simultâneo, ele mostrava-me um dístico azul que, em circunstâncias normais, lhe dariam direito a alguns privilégios de estacionamento. Mas nunca aquele ali assumido.
Hesitei uns segundos. Hesitei em dar-lhes uma lição de moral, em que as necessidades especiais dos deficientes seriam usadas para censurar aquele estacionamento abusivo, já que nem mesmo ela ali poderia passar. Hesitei em afastar-me e fotografar o conjunto, não lhes dando nem troco nem explicações. Hesitei em dar espaço nos meus lábios para de entre eles saíssem os impropérios que a minha língua violentamente insistia em pronunciar.
E, enquanto hesitava e levava a mão à minha câmara fotográfica no seu estojo sob o meu colete, ele engrenou a marcha-atrás, que nem tinha desligado o motor, reocupou a faixa de rodagem e afastou-se avenida abaixo. E eu fiquei a vê-lo afastar-se, no vazio de Agosto, sem que fosse sequer capaz de lhe fixar a matrícula.
O que me não sai da memória é o sorriso trocista daquela cara redonda encimando um corpo que me pareceu pequeno atrás do volante. E, garantidamente, da próxima vez que com ele me cruzar, farei com que guarde a troça e o sorriso no lugar que nunca nele foi ocupado por educação e respeito pelos demais concidadãos, deficientes ou não.
À fé de quem sou que não se ficará a rir!


Texto e imagem: by me

Sem comentários: