sábado, 14 de setembro de 2019

Ética na produção de imagem




Enquanto profissional da imagem e, consequentemente, de comunicação, enquanto amador de fotografia, tanto na sua prática como no seu disfrute, enquanto formador de jovens na área do audiovisual, estática e animada, enquanto pensador e autor de conteúdos sobre este campo, e desculpem-me a imodéstia, não posso deixar de me indignar com o que tenho visto nas televisões.
Em programas informativos genéricos são inseridas imagens divulgadoras de acontecimentos fotográficos. Tanto exposições, como prémios e óbitos de notórios autores de fotografia. Aprecio o facto, já que os noticiários podem e devem ser variados e não exclusivos de política e desporto, sendo a arte, nas suas diversas formas, assunto a ser falado e noticiado.
Já não aprecio, de todo, que os jornalistas que produzem esses conteúdos, ao escolherem imagens que ilustrem o que contam, se entendam autorizados a adulterar os trabalhos que divulgam. Não apenas não aprecio como condeno veementemente.
A prática tem sido fazer “aproximações” a parte das fotografias, cortando-as, alterando a sua interpretação ou leitura ao truncar parte delas, alterando centros de interesse, excluindo conteúdos pertinentes ou complementares, modificando ou abastardando o trabalho original. Indo mais longe, no final de tal violação da imagem, aquilo que é perceptível em pouco coincide com o trabalho original, levando a leituras que em pouco se assemelham às que o autor quis que existissem.
Se um fotógrafo decidiu que este ou aquele ponto ou assunto seriam o mais importante e usou da sua arte, técnica e perícia para o colocar em evidência, não será um terceiro, apenas com o intuito de divulgar a obra, que poderá “dizer” que o que importa não é isto mas antes aquilo ou aqueloutro. Que é o que estão a fazer ao alterar o enquadramento original.
Este trabalhar o trabalho de um autor é admissível se se estiver a fazer uma dissertação ou comentário, explicando a obra individual ou o conjunto de obras do autor. Ou fazendo uma análise semiótica dos trabalhos. Fará sentido, neste caso, exibir detalhes, conduzir o olhar do espectador, condicioná-lo de acordo com a crítica ou comentário em torno da obra. Agora apenas para divulgar uma exposição, um prémio, um óbito, será querer dizer que “a obra existe mas a minha visão de jornalista é mais importante”.
Também admissível, em contexto lectivo, a prática do método de “apropriação”. São os estudantes ou formandos convidados a trabalharem com obras de terceiros, notórias ou não, usando partes de várias e criando novas obras. Trata-se, neste caso, de trabalhar com “matéria-prima” para aprender, com o correspondente estudo dos trabalhos originais e razões específicas para a sua adulteração ou destruição. Um professor ou formador, consciente da sua tarefa, proporá o exercício, assumindo que se trata de um exercício de estilo e que o respeito pelo autor e a sua obra é algo que deve ser sempre acautelado.
A prática do truncar ou subverter trabalhos originais, imagens, textos, discursos, é comum em pasquins, redigidos ou dirigidos por maus profissionais. Também é prática de autores consagrados, assumindo que se trata de um trabalho autoral sobre o trabalho de terceiros. É igualmente prática de humoristas, que recorrem a este método para melhor passarem a sua mensagem original. De igual forma as redes sociais estão pejadas de tristes exemplos de apropriação e abastardamento da criatividade de outros, desta feita para reclamarem para si os louros que não lhes pertencem.
Mas é particularmente mau que estações de televisão, que reclamam ser e são referências no panorama nacional, o façam.
Deitam por terra todos os créditos que possam reclamar com tais práticas.
Que não pode um jornalista, seja qual for o suporte ou a sua especialidade, no acto de divulgação de uma obra, evento ou autor, querer assumir-se mais criativo que o que exibe, abastardando a obra original.
No âmbito da minha actividade profissional tenho tido discussões sérias sobre o tema com quem o faz. Tenho sido recebido com sorrisos amarelos, encolher de ombros, justificações esfarrapadas. E, principalmente, inconsequentes. Que o colocar em causa o trabalho de um jornalista roça o sacrilégio, do ponto de vista dos jornalistas.
Fica o desabafo público, que talvez venha a ser mais dirigido. Ainda estou por decidir.
E o pedido que quem pode impeça tal prática. Quer por instruções específicas a quem tal pratica, quer por protesto público contra tal prática.


Na imagem, uma fotografia icónica do séc. XX: o enfrentar carros de combate na praça Tianammen, em Pequim, em 1989.
A imagem da esquerda é uma das que o fotógrafo Charlie Cole fez então. A da direita é o reenquadramento fruto de uma “aproximação” lenta feito numa estação de televisão, para ilustrar a notícia da morte do autor.
Note-se a diferença de interpretação entre ambas: Se na original o estudante está colocado em frente do carro de combate, na segunda ele está encurralado em frente do carro de combate. Na primeira é uma opção do estudante, na segunda uma agressão por parte dos militares.
Não creio que tenha havido qualquer motivo subjectivo para esta alteração. Apenas não houve o cuidado de respeitar a imagem original, conduzindo a outras leituras apenas por desleixo. Ou por ignorância. Ou por arrogância. Mas, pela certa, pela falta de ética jornalística.


By me

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