Enquanto profissional da imagem e, consequentemente, de
comunicação, enquanto amador de fotografia, tanto na sua prática como no seu
disfrute, enquanto formador de jovens na área do audiovisual, estática e
animada, enquanto pensador e autor de conteúdos sobre este campo, e
desculpem-me a imodéstia, não posso deixar de me indignar com o que tenho visto
nas televisões.
Em programas informativos genéricos são inseridas imagens divulgadoras
de acontecimentos fotográficos. Tanto exposições, como prémios e óbitos de notórios
autores de fotografia. Aprecio o facto, já que os noticiários podem e devem ser
variados e não exclusivos de política e desporto, sendo a arte, nas suas
diversas formas, assunto a ser falado e noticiado.
Já não aprecio, de todo, que os jornalistas que produzem
esses conteúdos, ao escolherem imagens que ilustrem o que contam, se entendam
autorizados a adulterar os trabalhos que divulgam. Não apenas não aprecio como
condeno veementemente.
A prática tem sido fazer “aproximações” a parte das fotografias,
cortando-as, alterando a sua interpretação ou leitura ao truncar parte delas,
alterando centros de interesse, excluindo conteúdos pertinentes ou
complementares, modificando ou abastardando o trabalho original. Indo mais
longe, no final de tal violação da imagem, aquilo que é perceptível em pouco
coincide com o trabalho original, levando a leituras que em pouco se assemelham
às que o autor quis que existissem.
Se um fotógrafo decidiu que este ou aquele ponto ou assunto
seriam o mais importante e usou da sua arte, técnica e perícia para o colocar
em evidência, não será um terceiro, apenas com o intuito de divulgar a obra, que
poderá “dizer” que o que importa não é isto mas antes aquilo ou aqueloutro. Que
é o que estão a fazer ao alterar o enquadramento original.
Este trabalhar o trabalho de um autor é admissível se se
estiver a fazer uma dissertação ou comentário, explicando a obra individual ou
o conjunto de obras do autor. Ou fazendo uma análise semiótica dos trabalhos. Fará
sentido, neste caso, exibir detalhes, conduzir o olhar do espectador,
condicioná-lo de acordo com a crítica ou comentário em torno da obra. Agora
apenas para divulgar uma exposição, um prémio, um óbito, será querer dizer que “a
obra existe mas a minha visão de jornalista é mais importante”.
Também admissível, em contexto lectivo, a prática do método
de “apropriação”. São os estudantes ou formandos convidados a trabalharem com
obras de terceiros, notórias ou não, usando partes de várias e criando novas
obras. Trata-se, neste caso, de trabalhar com “matéria-prima” para aprender,
com o correspondente estudo dos trabalhos originais e razões específicas para a
sua adulteração ou destruição. Um professor ou formador, consciente da sua
tarefa, proporá o exercício, assumindo que se trata de um exercício de estilo e
que o respeito pelo autor e a sua obra é algo que deve ser sempre acautelado.
A prática do truncar ou subverter trabalhos originais,
imagens, textos, discursos, é comum em pasquins, redigidos ou dirigidos por
maus profissionais. Também é prática de autores consagrados, assumindo que se
trata de um trabalho autoral sobre o trabalho de terceiros. É igualmente
prática de humoristas, que recorrem a este método para melhor passarem a sua
mensagem original. De igual forma as redes sociais estão pejadas de tristes
exemplos de apropriação e abastardamento da criatividade de outros, desta feita
para reclamarem para si os louros que não lhes pertencem.
Mas é particularmente mau que estações de televisão, que
reclamam ser e são referências no panorama nacional, o façam.
Deitam por terra todos os créditos que possam reclamar com
tais práticas.
Que não pode um jornalista, seja qual for o suporte ou a sua
especialidade, no acto de divulgação de uma obra, evento ou autor, querer
assumir-se mais criativo que o que exibe, abastardando a obra original.
No âmbito da minha actividade profissional tenho tido
discussões sérias sobre o tema com quem o faz. Tenho sido recebido com sorrisos
amarelos, encolher de ombros, justificações esfarrapadas. E, principalmente, inconsequentes.
Que o colocar em causa o trabalho de um jornalista roça o sacrilégio, do ponto
de vista dos jornalistas.
Fica o desabafo público, que talvez venha a ser mais
dirigido. Ainda estou por decidir.
E o pedido que quem pode impeça tal prática. Quer por
instruções específicas a quem tal pratica, quer por protesto público contra tal
prática.
Na imagem, uma fotografia icónica do séc. XX: o enfrentar
carros de combate na praça Tianammen, em Pequim, em 1989.
A imagem da esquerda é uma das que o fotógrafo Charlie Cole
fez então. A da direita é o reenquadramento fruto de uma “aproximação” lenta feito
numa estação de televisão, para ilustrar a notícia da morte do autor.
Note-se a diferença de interpretação entre ambas: Se na
original o estudante está colocado em frente do carro de combate, na segunda
ele está encurralado em frente do carro de combate. Na primeira é uma opção do
estudante, na segunda uma agressão por parte dos militares.
Não creio que tenha havido qualquer motivo subjectivo para
esta alteração. Apenas não houve o cuidado de respeitar a imagem original,
conduzindo a outras leituras apenas por desleixo. Ou por ignorância. Ou por arrogância.
Mas, pela certa, pela falta de ética jornalística.
By me
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