Ontem, ao comprar
um livro, acabei por estar de conversa com a mocinha da loja. E porque a ideias
convergiam, sugeri-lhe que fosse procurar este texto.
Escrito por José Valente
e publicado no jornal Público em 1994, afixei-o na altura num painel na escola
onde trabalhei. De permeio com os demais anúncios e avisos de carácter que
alunos e professores ali colocavam. Quando me vim embora ainda lá estava.
Volta e meia
repito-o aqui. Que haverá sempre quem por aqui passe e não o conheça. Ou quem
por aqui passa e que dele já se tenha esquecido.
“Carta a um
ex-aluno
Sem que
verdadeiramente o tivesses notado, entre a boémia e as lutas estudantis, voaram
os cinco anos que te separavam do primeiro emprego. Prolongaste habilmente a
adolescência até onde te foi possível. Até hoje. Subitamente descobres que se
tornou inconveniente o protesto, arriscada a crítica, imperdoável a
irreverência. Há quem ache que crescer é isso.
Fica desde já
decretado que usarás gravata. É natural: são cada vez mais as situações em que
somos obrigados a exibi-la. Felizmente não são as mais agradáveis. Claro que
terás licença de porte de jeans ao fim de semana, mas a gravata é o ritual
iniciático com que marcarás a entrada na idade adulta.
Pensarás agora em
fazer carreira. E a carreira é uma coisa que se faz subindo. Alguns sobem por
ser do partido; outros apesar de não o terem. Distingue-os o facto de os
primeiros serem muito mais numerosos e de a sua ascensão ser substancialmente
mais fácil. Poderás manter as tuas convicções, mas deverás optar por um
prudente lusco-fusco: a afirmação da diferença exigirá que sejas
profissionalmente muito melhor para que te tolerem. Mais vale não arriscares:
entre a fidelidade e a competência, o poder que temos opta sempre pela
primeira.
Deverás, portanto,
ser cauteloso. Antigamente em cada organização havia um pide e toda a gente
sabia quem era. Agora é tudo mais leve, mais solto, mais terra-a-terra: o tipo
que nos trama sorri-os da secretária ao lado. Ou então foi a outra, aquela que,
ainda na faculdade, passou, de repente, a cumprimentar só com um beijinho,
como, de imediato, passaram a fazer a cabeleireira dela, a manicure dela e a
costureira dela. De qualquer modo, a denuncia foi feita na reunião do partido e
já ninguém vai preso por subversão. Apenas nos comunicam que não fomos
promovidos ou que o nosso contrato não foi renovado. Por razões estritamente
técnicas.
Entre um slogan e
um argumento, escolherás o primeiro: a argumentação, como se sabe, é sinal da
mais confrangedora tibieza. Se te couberem em sorte alguns subordinados,
assumirás o protagonismo nos bons momentos e deixar-lhe-ás o ónus dos momentos
maus. Os subordinados foram feitos exactamente para isso. E se, mesmo assim, te
vires em dificuldades, escolherás alguns deles, elogiá-los-ás publicamente de
modo excessivo e demiti-los-ás logo que possas. Se os teus erros exigirem a
exposição pública de um culpado, que, pelo menos, não sejas tu. Terás, clarão,
que por de lado esse apego à solidariedade: vives sob um poder que tem o
autoritarismo como gramática, o pragmatismo como prontuário, a hipocrisia como
respiração.
Claro que a
indignação nos prega partidas. Se um dia a náusea começar a estrebuchar, talvez
seja prudente resistires. A coerência é um luxo que, muitas vezes, se paga
caro. Umas boas férias ajudarão. Retemperado, poderás derramar sobre essa
revolta a condescendência de um sorriso.
Mas, se mesmo
assim, não te resignares à surdina do ressentimento, invocarás, como
justificação, um excesso de juventude. Deverás ostentar nessa invocação o mais
genuíno arrependimento. O poder adora arrependidos e concede-lhes sempre um
perdão compadecido e o correspondente subsídio de instalação.
Mas se nada disto
te bastar, se o cansaço te encalhar num monte de urtigas e a repulsa meter uma
bala na câmara, talvez possas improvisar conselhos a um qualquer ex-aluno.
Deverás destinar esta carta à mais secreta das tuas gavetas. Ou então resta-te
assumir que és um caso perdido. Com a vertiginosa alegria de saberes que,
apesar de tudo, a adolescência continua a cascatear-te baixinho por dentro.”
Texto: by José
Valente, in Público, 1994
Imagem: by me
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