quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Nas sombras da memória




De minha casa para o liceu onde estudei era bem uma hora de viagem. Não havia vias rápidas, nem corredores do BUS e os próprios autocarros eram velhos. Aliás, tão velhos eram que ainda circulavam os de dois pisos de porta atrás, porta esta que não fechava. Era divertido para os que tentavam ir à borla, se o cobrador não aparecesse com o seu terrífico alicate. E aparecia com frequência.
Às sete e pouco da manhã o autocarro a que subia era sempre o mesmo, bem como os que comigo aguardavam na paragem. Eu diria que, mais que ser sempre o mesmo no horário, era efectivamente a mesma viatura.
Isto porque havia no caminho uma pequena subida, com pouco mais de vinte metros, mas particularmente íngreme. O suficiente para que aquele motor estafado e carregado como ia, se queixasse e recusasse a subi-la.
E, em o ouvindo a protestar, todos nós, os habituais viajantes, já sabíamos o que fazer: Saíamos todos, percorríamos aqueles vinte metros a pé, lado a lado com o velho verdinho de dois pisos e, em terminando a subida, embarcávamos de novo. Estivesse o sol já acima do horizonte ou fosse ainda noite fechada e a chover.
Interessante mesmo de recordar é que, ao regressarmos ao interior, cada um ia ocupar exactamente o mesmo lugar que tinha ocupado, fosse ele à janela ou na coxia, em baixo ou em cima, ou, na pior das hipóteses, de pé. E eram só quatro que iriam de pé, que havia lotação controlada.
Claro que os protestos aconteciam, não fôramos nós portugueses, por vezes com alguma dose de humor, outras nem tanto, fazendo a maioria cara de conformados, que outra alternativa não tínhamos.
Claro que isto hoje não sucederia. Não há autocarros em tão mau estado, não há autocarros só com quatro lugares de pé nem há autocarros de porta sempre aberta.
Mas também não há o sentimento de respeito pelo próximo como então.
Seria, hoje, uma correria para ver quem ficaria no lugar que mais lhe agradasse, com alguns encontrões e discussões sobre a legitimidade de se estar sentado ou o fatalismo de ficar de pé.
Nestes quarenta anos que nos separam do então vieram a democracia, a liberdade de expressão, os autocarros com ar condicionado, escassos lugares sentados e vias reservadas aos transportes públicos. Desapareceram a censura e a polícia política, as paragens-zona e o alicate do cobrador.
Mas também sobreveio uma sociedade competitiva, incentivada por governos, alimentada pelo consumo e encorajada pelo pseudo desporto em que o que mais conta é a vitória e não o participar. Em contrapartida, diluiu-se a capacidade de perdoar e a solidariedade como atitude permanente na vida.
Para além das memórias, tenho um alicate de cobrador para as reavivar. E tenho a prática do quotidiano, que me mantém vivo e sem vergonha de olhar o espelho.

Texto e imagem: by me

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