quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Pagamentos




 As traseiras da casa onde me fiz homem davam para uma rua sem saída. Toda a rua era traseiras, excepto lá no fundo onde uns poucos de prédios, em forma de largo, davam o deu melhor para esta artéria.

Hoje é parqueamento diurno e nocturno de moradores e não só. As frondosas árvores de agora eram então raquíticos troncos eternamente ameaçados na sua sobrevivência pela seca e as bolas com que a miudagem as acertava, já fora da linha lateral definida pelo lancil do passeio.

Sei que a acústica era boa. Não apenas se ouviam bastante bem as vozes maternas chamando os rebentos para a mesa ou cama, como pelo canto e música que se ouvia.

Ficava esta rua no roteiro de dois homens que cruzavam a cidade, pedindo esmola. Mas não o faziam de porta em porta, estendendo a mão à caridade de quem as abria.

Um deles com o seu saxofone e o outro com a sua voz, davam-nos pequenos mas belos concertos de árias clássicas ou populares.

O instrumentista era cego, o vocalista não possuía o braço esquerdo. Mas juntos, na sua deficiência, suplantavam alguns palcos de fraques e toilletes janotas.

As janelas engalanadas de roupa a secar enchiam-se de miúdos e graúdos, para os ver e ouvir. Mesmo até ao topo do alto 13º andar, o 3º balcão daquela sala aberta para o céu.

Depois da sua actuação de uns bons quinze a vinte minutos, ajudada pela acústica da rua, o cantor circulava junto aos prédios, olhando para cima e para o chão. Recolhia os pedaços de papel com moedas que eram atirados pelas janelas dos moradores.

Rasguei várias páginas dos cadernos da escola.

Não eram esmolas! Eram antes o pagamento sincero de bons momentos que ficavam na memória. Pela raridade e pela qualidade.

Na minha mente, sempre imaginei o cantor como um deficiente da guerra do ultramar, mas nunca o soube ao certo. O que era garantido era que, de cada vez que passava, talvez de três em três meses, a sua voz acompanhava o cabelo: envelhecia e perdia volume e qualidade.

Até que deixaram de aparecer.

Hoje, quando vejo alguém a tocar na rua, de cesto, caixa ou lata no chão em frente, num convite à esmola, recuso.

Não dou!

Não dou uma esmola!

Pago!

Pago o prazer que tenho em estar uns minutos parado, ou mesmo que só de passagem, a escutar música ao vivo, inesperada, bem ou mal executada mas ali, ao vivo. Que me aquece a alma.


Não dou esmolas: pago um serviço!


By me

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