terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Escatologia


 


Há uns anos, nove para ser mais rigoroso, tive um incidente na via pública de que resultou ficar com uma mão partida.

Vítima inocente, e depois de falar com a polícia que compareceu em força, em várias viaturas e de armas aperradas, lá fui tratar da minha pobre mão, inchada e dolorosa, nos hospitais.

Sendo que não adianta chorar sobre leite derramado, tentei tirar partido do episódio e do que se lhe seguiu, com alguns relatos e fotografias, as possíveis para quem tem a mão esquerda engessada. Ou recorrendo ao arquivo, como foi o caso desta.

 

“Foi mais ou menos a meio da semana passada. E ela foi tão recheada de peripécias tão inverosímeis, que começa a ser difícil fazer uma cronologia exacta.

Em qualquer dos casos, estava eu numa sala de espera enorme de um serviço de consultas externas hospitalares. Esperava eu ser atendido e tratar da minha vida de doente e paciente. Serviu para mitigarmos reciprocamente a impaciência o ter encontrado uma amiga, que ali também esperava vez, já em tratamento continuado.

Quando o painel brilhou o meu número avancei, confiante. Asneira!

Era a minha vez, sim senhor, mas faltava-me um papel que deveria ter sido emitido por quem ali me havia enviado.

“Mas repare!”dizia eu. “Tem aí o exame radiológico, em formato de CD, onde constam todos os elementos, desde a referência ao número do episódio clínico ao meu estado de saúde. Se ligarem – telefone ou net – para o outro hospital, lhe darão as informações de que carecem.”

A senhora levantou-se, contrafeita, e foi lá dentro, falar não sei com quem. Regressou irredutível:

“Falta-lhe esse papel. Nada feito. Tem que lá voltar.”

Eu sei que estas pessoas, por muito simpáticas e afáveis que sejam – e aquela estava a sê-lo – mais não fazem que cumprir ordens.

“Chame lá o seu chefe que falo eu com ele.”

Veio uma chefa, ainda mais simpática e sorridente que a subordinada (por isso é que é chefa) mas tão ou mais determinada a cumprir determinações quiçá superiores.

Nada satisfeito com a expectativa de ter que percorrer cerca de 20km em três transportes públicos diferentes, para cada lado, só por causa de um papel e da “teimosia” daquelas duas, não resisti e proferi:

“Vou dizer uma palavra feia!”

Criei uma pausa teatral, dando tempo a que quem me ouviu – e foram vários – que arremelgassem os olhos e sustivessem a respiração, e disse bem alto:

“Penico!”

Se, naquele momento, ali se tivessem aberto uns quinze a vinte balões, não teriam feito mais barulho no seu expirar!

Insisti no absurdo da situação, na estúpida perda de tempo e dinheiro nesse meu ir e voltar, mas nada consegui. E acrescentei:

“Vou dizer outra palavra feia! Autoclismo!”

Os sorrisos foram mais francos e aliviados, mas inconsequentes no sentido que eu queria.

Antes de abalar, paciente impaciente e inconformado, para onde me tinham mandado, estive vai-não-vai para lhes atirar com o supra-sumo desta minha lista de impropérios, contendo todos os “Rs” que o calão escatologico de salão permite:

“Retrete!”

Guardei-o!

A imbecilidade Kafkaniana das regras dos Serviço Nacional de Saúde não merece que eu perca o meu bom-humor.

Se outros motivos não existissem, seria mais trabalho meu que deles, que é difícil tirar o sono a quem apenas cumpre ordens e dedilha um teclado.”

 

Confesso que hoje, noutras circunstâncias e apesar de não haver gesso envolvido nem zelosos cumpridores de normas e burocracias, me apetece enxugar as lágrimas e dar bom uso ao vernáculo.

Não adianta coisa nenhuma, excepto o aliviar da alma. E isso é importante que aconteça.


By me

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