quarta-feira, 30 de dezembro de 2020
Cota
terça-feira, 29 de dezembro de 2020
A prática da arte
“A arte é uma fonte de conhecimento, tal como a ciência, a filosofia, etc., e a grande luta empreendida pelo homem para ir ajustando a sua concepção da realidade – que é o que o enaltece e o torna livre – não pode prosperar se se manipularem ideias que já foram concebidas e realizadas anteriormente. As formas caducas não podem conduzir a ideias actuais. Se as formas não forem capazes de ferir a sociedade que as recebe, de a irritarem, de a impelirem à meditação, de fazerem com que ela veja que está atrasada, senão estiverem em ruptura, então não são uma verdadeira obra de arte. Perante uma verdadeira obra de arte, o espectador deve sentir-se obrigado a fazer um exame de consciência e a pôr em dia as suas velhas concepções. O artista deve fazer com que ele compreenda que o seu mundo era estreito, e deve abrir-lhe novas perspectivas. Isto é: deve levar a cabo uma autêntica obra humanitária.
Quando o grande público encontra plena satisfação em determinadas formas artísticas, é porque essas formas já perderam toda a sua virulência.
Onde não houver verdadeiro impacto, não haverá arte. Quando a forma artística não é capaz de provocar o desconcerto no espírito do espectador e não o obriga a mudar a forma de pensar, não é actual. “
Texto: Antoni Tàpies, in “A prática da arte”, 1970
Imagem: by me
domingo, 27 de dezembro de 2020
Votos
Próspero e saudável ano novo para todos. Os que merecem e os
que não merecem.
Os segundos porque quero que assistam de pé às vitórias dos
primeiros.
By me
sexta-feira, 25 de dezembro de 2020
Media e democracia
Excerto do artigo hoje
publicado no jornal “Diário de Notícias”.
Parto do princípio que
seja rigorosamente verdade.
Assim sendo, concluo sem
dificuldade que a isenção politico-partidária das televisões portuguesas anda
pelas ruas da amargura.
“As televisões (RTP, SIC
e TVI) não vão mudar o alinhamento dos seus frente-a-frente para as
presidenciais só porque entretanto se confirmou a candidatura de
"Tino" de Rans. O líder do RIR e antigo militante do PS vai ficar de
fora.
Vitorino Silva -
"Tino" de Rans - já entregou as assinaturas para ser candidato
presidencial mas será excluído dos frente-a-frente que as televisões (RTP, SIC
e TVI) organizaram e que serão transmitidos de 2 a 9 de janeiro.
A decisão já estava
tomada entre as direções de informação das três estações ainda antes de o
antigo presidente da junta de freguesia de Rans (Penafiel) ter apresentado as
assinaturas (apresentou nove mil quando só precisava de 7500).
O argumento das
televisões é que, como os frente-a-frente terão lugar antes do período oficial
de campanha (que começa a 11 de janeiro e terminará a 22, sendo as eleições a
24), é possível ter critérios editoriais que não impliquem tratamento
absolutamente igualitário entre todas as candidaturas.
E assim, só estarão nos
frente a frente os candidatos que, de uma forma ou de outra, têm alguma espécie
de correspondência com os partidos parlamentares: Marcelo é apoiado pelo PSD e
pelo CDS; Ana Gomes é militante do PS e apoiada pelo PAN; Marisa Matias pelo
BE; João Ferreira pelo PCP e pelo PEV; André Ventura, pelo Chega; e Tiago
Mayan, pela Iniciativa Liberal.
Obedecendo a este
critério, "Tino" de Rans ficará de fora. Sendo líder de um partido -
o RIR (Reagir, Incluir, Reciclar) não tem no entanto representação parlamentar.”
.../...
quinta-feira, 24 de dezembro de 2020
Prazeres ou nem tanto
Consigo entender parte da satisfação obtida na caça.
Tradições
Dezembro é época de
tradições. Pelo menos nesta zona do globo.
Usemo-la e contemos
histórias ou estórias apropriadas.
Neste caso, um texto de
um excelente autor, maldito para uns, magnifico para outros.
E, se excluirmos algum
exagero aqui ou ali, certamente que reconhecerão o descrito.
Como a família da
Lurdinhas passou a consoada do ano passado:
Para estreitar os laços
familiares, não há nada que chegue à festa do Natal, lá isso é verdade, mas
espero que neste ano as coisas corram melhor do que o ano passado e não seja
preciso o meu pai ir mudar de roupa a meio do jantar por ter apanhado em cheio
com o galheteiro do azeite nos cornos, atirado pela minha mãe que o topou a
apalpar o cu à D. Filomena, uma prima da minha madrinha que veio de Angola e
vive numa pensão em Almirante Reis e anda a estudar para manicure.
A minha mãe ficou bera e
com razão, não é por ser minha mãe, esteve quase a dar-lhe o fanico e só
gritava: «Tirem-me essa puta da frente! Tirem-me essa puta da frente!» Mas
quando as pessoas são educadas, as coisas acabam por compor-se e bastou tirarem
a D. Filomena de ao pé do meu pai para ficar tudo em sossego. No fim até
estiveram as duas a falar de crochés e da telenovela, que nessa altura dava na
televisão, e a D. Filomena ofereceu-se para tratar os pés da minha mãe, assim
que acabasse um curso de calista que andava a tirar ali para os lados da Fonte
Luminosa.
Essa bronca portanto foi
o menos; o pior veio a seguir quando a minha avó teve a infeliz ideia de
perguntar à prima Otília que presente de Natal é que lhe tinham dado os patrões
do escritório onde ela trabalha e a parva descaiu-se a dizer que, do senhor
Benjamim, recebeu um jogo de calcinhas e soutien em nylon, e do senhor Canelas,
um vibrador-masturbador japonês, muito bonito, todo transistorizado.
Ora, ao ouvir isto, o
Fernando, que é o marido da Otília e tinha metido na boca uma grande garfada,
engasgou-se, engoliu uma data de espinhas de bacalhau, cuspiu o resto no prato
do meu avô e desatou ao bofetão à mulher: «Sua cabra! Sua ordinária!» e a dizer
que ia enfiar o vibrador pelo cu do Canelas acima e partir os cornos ao
porcalhão do Benjamim.
E a palerma da Otília, em
vez de se calar, como era a obrigação dela, cresceu para o marido que até
parecia uma leoa: «Tire as patas de cima de mim, seu cabrão! Você é que tem
cornos e dos grandes, ouviu?» E ele, todo a tremer: «Eu?! E ainda o dizes,
grandessíssima puta?» E a Otília: «Pois digo para vergonha tua, que nem és
marido nem nada! Se não fossem os meus patrões não sei o que seria de mim?». E
desatou a chorar baba e ranho e então o Fernando agarrou na faca de cortar o
bolo-rei e toda a família se pôs a gritar «Ai que ele mata-a! Ai que ele
mata-a!», mas o meu pai tirou-lhe a faca e o tio Arnaldo obrigou-o a sentar-se
na cadeira, deu-lhe palmadinhas nas costas e disse-lhe: «Não ligues ao que ela
diz, pá, que as mulheres são todas umas putas», e ele ao ouvir estas boas
palavras, ficou mais sossegado e até alargou um furo ao cinto para continuar a
comer.
O pior é que a tia
Palmira não gostou da conversa do marido e começou a refilar que não queria
confusões, que se as outras eram putas ela era uma mulher séria, que quem não
se sente não é filho de boa gente, etc., etc., mas o tio Arnaldo que é um
bocado bruto atirou-lhe logo esta a matar: «Escusas de armar em séria, que
todos sabem que andaste enrolada com o Gonçalves da farmácia quando ele te
tratou do eczema»; e ela, logo: «E tu com a Gracinda da peixaria, que até
escamas de pargo trazias para casa nas cuecas!» E o tio Arnaldo, muito fodido:
«As escamas de pargo não são aqui chamadas para nada, porra!» E, ao dizer isto,
deu tal murro num prato de filhoses que saltou calda para todo o lado e até eu
fiquei com o cabelo enchapoçado dela. E o meu pai que ia acudir pela tia
Palmira, esteve vai não vai para apanhar outra vez com o galheteiro, pois a
minha mãe tinha-o sempre debaixo de olho; enfim, só visto!
O que valeu para que a
festa de Natal não ficasse estragada foi a minha madrinha impor-se, visto ser
ela a dona da casa, e avisar que não consentia faltas de respeito, que aquilo
ali não era nenhuma taberna e que achava uma sacanice estarem a encher o
bandulho à custa dela, com a comida cara como estava, e a portarem-se que nem
javardos em vez de se mostrarem agradecidos. «Ou comem de bico calado ou vai
tudo para o olho da rua!» disse ela e ninguém refilou; durante algum tempo só
se ouviu mastigar, até que o senhor Aguinaldo, o sacana do velhote que está
amigado com a minha madrinha e que até aí só abria a boca para meter para
dentro, resmungou lá do canto que no olho da rua já nós devíamos estar há muito
e que se a família dele fosse ordinária como a nossa já a tinha rifado. Um gajo
bera, palavra de honra; não são coisas que se digam assim na frente das pessoas
e ainda gostava de ver que merda de família é a dele; cheira-me que é para ali
uma ciganada cheia de putas, chulos, sovaqueiras e arrebentas.
Mas a minha mãe, que tem
muito jeito para compor as coisas quando não está com a bolha, disse que o melhor
era a minha madrinha abrir a televisão, que tem programas muito bonitos no
Natal, porque as conversas não fazem falta para nada e a gente não estava ali
para conversar mas para comer e que assim as crianças sempre estavam mais
distraídas. Foderam-me!
Foi assim que tive de
gramar duas horas de chachadas como essa porcaria das canções do Natal, das
entrevistas do Natal, das tradições do Natal, dos votos de Natal e até dos
anúncios do Natal, sem ter feito mal a ninguém. Não é que eu goste de chavascal
e sarrafada, mas, mal por mal, ainda preferia ver os parentes todos à porrada e
a descobrir o cu uns aos outros do que ver a merda da televisão.
Texto: by José Vilhena
terça-feira, 22 de dezembro de 2020
Nas sombras da memória
De minha casa para o liceu onde estudei era bem uma hora de viagem. Não havia vias rápidas, nem corredores do BUS e os próprios autocarros eram velhos. Aliás, tão velhos eram que ainda circulavam os de dois pisos de porta atrás, porta esta que não fechava. Era divertido para os que tentavam ir à borla, se o cobrador não aparecesse com o seu terrífico alicate. E aparecia com frequência.
Às sete e pouco da manhã o autocarro a que subia era sempre o mesmo, bem como os que comigo aguardavam na paragem. Eu diria que, mais que ser sempre o mesmo no horário, era efectivamente a mesma viatura.
Isto porque havia no caminho uma pequena subida, com pouco mais de vinte metros, mas particularmente íngreme. O suficiente para que aquele motor estafado e carregado como ia, se queixasse e recusasse a subi-la.
E, em o ouvindo a protestar, todos nós, os habituais viajantes, já sabíamos o que fazer: Saíamos todos, percorríamos aqueles vinte metros a pé, lado a lado com o velho verdinho de dois pisos e, em terminando a subida, embarcávamos de novo. Estivesse o sol já acima do horizonte ou fosse ainda noite fechada e a chover.
Interessante mesmo de recordar é que, ao regressarmos ao interior, cada um ia ocupar exactamente o mesmo lugar que tinha ocupado, fosse ele à janela ou na coxia, em baixo ou em cima, ou, na pior das hipóteses, de pé. E eram só quatro que iriam de pé, que havia lotação controlada.
Claro que os protestos aconteciam, não fôramos nós portugueses, por vezes com alguma dose de humor, outras nem tanto, fazendo a maioria cara de conformados, que outra alternativa não tínhamos.
Claro que isto hoje não sucederia. Não há autocarros em tão mau estado, não há autocarros só com quatro lugares de pé nem há autocarros de porta sempre aberta.
Mas também não há o sentimento de respeito pelo próximo como então.
Seria, hoje, uma correria para ver quem ficaria no lugar que mais lhe agradasse, com alguns encontrões e discussões sobre a legitimidade de se estar sentado ou o fatalismo de se ficar de pé.
Nestes quarenta e tal anos que nos separam do então vieram a democracia, a liberdade de expressão, os autocarros com ar condicionado, escassos lugares sentados e vias reservadas aos transportes públicos. Desapareceram a censura e a polícia política, as paragens-zona e o alicate do cobrador.
Mas também sobreveio uma sociedade competitiva, incentivada por governos, alimentada pelo consumo e encorajada pelo pseudo desporto em que o que mais conta é a vitória e não o participar. Em contrapartida, diluiu-se a capacidade de perdoar e a solidariedade como atitude permanente na vida.
Para além das memórias, tenho um alicate de cobrador para as reavivar. E tenho a prática do quotidiano, que me mantém vivo e sem vergonha de olhar o espelho.
Nota fotográfica adicional - este é o tipo de luz de que mais gosto: vindo do lado de lá do assunto.
By me
segunda-feira, 21 de dezembro de 2020
Hoje
Para os antigos, os mesmo muito antigos, a contagem do tempo
fazia-se por dias.
E é fácil de entender porquê. Sem mecanismos naturais ou
manufacturados, o movimento aparente do sol, com o seu nascer e morrer no
horizonte cíclico e garantido era algo fiável e facilmente contável.
Claro que muitos dias podem ser confundíveis e surge nova
unidade de tempo, igualmente natural: a lua. O seu regular movimento de cheia a
cheia, com as fases intermédias, permitiu definir meses e semanas. Estas de
sete dias, tantos quantos os de cada fase.
O somatório de várias luas veio criar o ano, desta feita
associado às estações do ano, igualmente cíclico. A própria natureza, com o
reproduzir animal e vegetal, ajudou a confirmar a regularidade.
Ainda hoje usamos estas formar primárias de medição
temporal: dias, semanas, meses, anos. E inventámos calendários, demos-lhes
nomes e números, marcámos momentos especiais e celebramos cada ciclo que
vivemos. E é tão verdade que zonas do globo há que comemoram o maior dos
ciclos, o ano, com calendários lunares, ao invés dos relativamente modernos 365
dias e seis horas.
Mas entre dias, meses e anos assim observados e contados, há
um outro acontecimento natural regular e observável que auxilia na contagem do
tempo: a duração da luz natural. Sabemos da vivência e dos bancos da escola que
os dias são mais longos no verão e mais curtos no inverno. E os antigos, os
muito antigos, também se aperceberam disso. E deram-lhe importância suficiente
para, unindo esforços, erguerem monumentos magníficos e duradoiros para
assinalarem os maiores, menores ou equiduradoiros. Concebidos e orientados com
um rigor quase assustador, se considerarmos os conhecimentos e capacidades de
engenharia de então.
Este reconhecer de alguns dias do ano, solstícios e
equinócios, aconteceu por todo o globo, em todos os continentes e civilizações.
E o assinalar desses dias, em calendários mais ou menos elaborados ou em
edificações mais primárias, também aconteceu por todo o lado, nas mais diversas
e remotas civilizações e culturas.
É também por isso que eu, consumidor do átomo e do nano segundo,
tenho especial admiração pelos muito antigos e pelos seus saberes, quantas
vezes ignorados ou menosprezados hoje. Em particular no seu reconhecimento do
tempo, que não dominamos mas que apenas podemos contar e usufruir. Quantas
vezes inutilmente.
É nessa linha que tenho especial carinho pelos solstícios e
equinócios, celebrados desde sempre e por todos. E, tivesse eu poder sobre as
leis globais, decretaria esses quatro dias como feriados mundiais. Que não
dependem de eventos humanos e que, façamos o que fizermos, continuarão a
acontecer muito depois de o ser humano deixar de ser apenas uma memória no
universo.
Hoje é um desses dias: Solstício, de inverno para uns de
verão para outros. O dia mais curto ou mais longo, que as diversas teologias
trataram de mascarar ou adaptar com outras histórias ou eventuais marcos
humanos.
Sugiro que hoje, e se chegaram ao fim desta diatribe, olhem
em redor. Para o céu ou para o horizonte, citadino ou campestre.
E que durante um pedacinho pensem na nossa própria
efemeridade, no modo como ocupamos aquilo que não dominamos nem nos pertence,
nas coisas boas ou más que com ele fazemos. Naquilo que não fazemos, desperdiçando
a vida. E naquilo que faz com que cada dia, mês, ano, seja bom, válido e nos
enche a alma.
Feliz solstício.
By me
sexta-feira, 18 de dezembro de 2020
Formas de estar
É incrível a quantidade de pessoas que são anti. Anti-Qualquer-Coisa.
Anti-fascista, anti-racista, anti-capitalista, anti-comunista, anti-sistema, anti-euro, anti-violência,… anti!
O que é curioso – ou triste – é que ser anti-qualquer-coisa, por muito nobre que seja a causa, é viver num estado de luta ou confronto permanente. É estar sempre a querer acabar com aquilo de que se é anti. Seja lá o que for!
E ao estar-se em luta permanente na prática está-se em luta consigo mesmo. Porque o resultado de se estar sempre num estado de anti é não se estar pró na vida. Que quem luta sempre na vida acaba por não a viver, por não se aperceber de tudo ou grande parte daquilo que é positivo.
Tenho uma atitude diferente: sou pró! Sou pró-felicidade, sou pró-liberdade, sou pró-responsabilidade, sou pró-bem-estar, sou pró-criatividade. Sou pró!
Claro que tenham cuidado os que impeçam o atingir aquilo pelo qual sou pró! Estão tramados! Que sou anti todos eles, com tudo o que isso implique!
Dirão que é uma questão de semântica. Pois talvez o seja.
Mas entre estar em luta para ser feliz ou ser feliz estando em luta, prefiro o primeiro.
By me
quinta-feira, 17 de dezembro de 2020
Tradições
Dezembro é época de tradições. Pelo menos nesta zona do globo.
Usemo-la e contemos histórias ou estórias apropriadas.
Neste caso, um texto de um excelente autor, maldito para uns, magnifico para outros.
E, se excluirmos algum exagero aqui ou ali, certamente que reconhecerão o descrito.
Como a família da Lurdinhas passou a consoada do ano passado:
Para estreitar os laços familiares, não há nada que chegue à festa do Natal, lá isso é verdade, mas espero que neste ano as coisas corram melhor do que o ano passado e não seja preciso o meu pai ir mudar de roupa a meio do jantar por ter apanhado em cheio com o galheteiro do azeite nos cornos, atirado pela minha mãe que o topou a apalpar o cu à D. Filomena, uma prima da minha madrinha que veio de Angola e vive numa pensão em Almirante Reis e anda a estudar para manicure.
A minha mãe ficou bera e com razão, não é por ser minha mãe, esteve quase a dar-lhe o fanico e só gritava: «Tirem-me essa puta da frente! Tirem-me essa puta da frente!» Mas quando as pessoas são educadas, as coisas acabam por compor-se e bastou tirarem a D. Filomena de ao pé do meu pai para ficar tudo em sossego. No fim até estiveram as duas a falar de crochés e da telenovela, que nessa altura dava na televisão, e a D. Filomena ofereceu-se para tratar os pés da minha mãe, assim que acabasse um curso de calista que andava a tirar ali para os lados da Fonte Luminosa.
Essa bronca portanto foi o menos; o pior veio a seguir quando a minha avó teve a infeliz ideia de perguntar à prima Otília que presente de Natal é que lhe tinham dado os patrões do escritório onde ela trabalha e a parva descaiu-se a dizer que, do senhor Benjamim, recebeu um jogo de calcinhas e soutien em nylon, e do senhor Canelas, um vibrador-masturbador japonês, muito bonito, todo transistorizado.
Ora, ao ouvir isto, o Fernando, que é o marido da Otília e tinha metido na boca uma grande garfada, engasgou-se, engoliu uma data de espinhas de bacalhau, cuspiu o resto no prato do meu avô e desatou ao bofetão à mulher: «Sua cabra! Sua ordinária!» e a dizer que ia enfiar o vibrador pelo cu do Canelas acima e partir os cornos ao porcalhão do Benjamim.
E a palerma da Otília, em vez de se calar, como era a obrigação dela, cresceu para o marido que até parecia uma leoa: «Tire as patas de cima de mim, seu cabrão! Você é que tem cornos e dos grandes, ouviu?» E ele, todo a tremer: «Eu?! E ainda o dizes, grandessíssima puta?» E a Otília: «Pois digo para vergonha tua, que nem és marido nem nada! Se não fossem os meus patrões não sei o que seria de mim?». E desatou a chorar baba e ranho e então o Fernando agarrou na faca de cortar o bolo-rei e toda a família se pôs a gritar «Ai que ele mata-a! Ai que ele mata-a!», mas o meu pai tirou-lhe a faca e o tio Arnaldo obrigou-o a sentar-se na cadeira, deu-lhe palmadinhas nas costas e disse-lhe: «Não ligues ao que ela diz, pá, que as mulheres são todas umas putas», e ele ao ouvir estas boas palavras, ficou mais sossegado e até alargou um furo ao cinto para continuar a comer.
O pior é que a tia Palmira não gostou da conversa do marido e começou a refilar que não queria confusões, que se as outras eram putas ela era uma mulher séria, que quem não se sente não é filho de boa gente, etc., etc., mas o tio Arnaldo que é um bocado bruto atirou-lhe logo esta a matar: «Escusas de armar em séria, que todos sabem que andaste enrolada com o Gonçalves da farmácia quando ele te tratou do eczema»; e ela, logo: «E tu com a Gracinda da peixaria, que até escamas de pargo trazias para casa nas cuecas!» E o tio Arnaldo, muito fodido: «As escamas de pargo não são aqui chamadas para nada, porra!» E, ao dizer isto, deu tal murro num prato de filhoses que saltou calda para todo o lado e até eu fiquei com o cabelo enchapoçado dela. E o meu pai que ia acudir pela tia Palmira, esteve vai não vai para apanhar outra vez com o galheteiro, pois a minha mãe tinha-o sempre debaixo de olho; enfim, só visto!
O que valeu para que a festa de Natal não ficasse estragada foi a minha madrinha impor-se, visto ser ela a dona da casa, e avisar que não consentia faltas de respeito, que aquilo ali não era nenhuma taberna e que achava uma sacanice estarem a encher o bandulho à custa dela, com a comida cara como estava, e a portarem-se que nem javardos em vez de se mostrarem agradecidos. «Ou comem de bico calado ou vai tudo para o olho da rua!» disse ela e ninguém refilou; durante algum tempo só se ouviu mastigar, até que o senhor Aguinaldo, o sacana do velhote que está amigado com a minha madrinha e que até aí só abria a boca para meter para dentro, resmungou lá do canto que no olho da rua já nós devíamos estar há muito e que se a família dele fosse ordinária como a nossa já a tinha rifado. Um gajo bera, palavra de honra; não são coisas que se digam assim na frente das pessoas e ainda gostava de ver que merda de família é a dele; cheira-me que é para ali uma ciganada cheia de putas, chulos, sovaqueiras e arrebentas.
Mas a minha mãe, que tem muito jeito para compor as coisas quando não está com a bolha, disse que o melhor era a minha madrinha abrir a televisão, que tem programas muito bonitos no Natal, porque as conversas não fazem falta para nada e a gente não estava ali para conversar mas para comer e que assim as crianças sempre estavam mais distraídas. Foderam-me!
Foi assim que tive de gramar duas horas de chachadas como essa porcaria das canções do Natal, das entrevistas do Natal, das tradições do Natal, dos votos de Natal e até dos anúncios do Natal, sem ter feito mal a ninguém. Não é que eu goste de chavascal e sarrafada, mas, mal por mal, ainda preferia ver os parentes todos à porrada e a descobrir o cu uns aos outros do que ver a merda da televisão.
Texto: by José Vilhena
Imagem: by me
quarta-feira, 16 de dezembro de 2020
O pão
Alguém me explica porque é que ao pão acabado de sair do
forno, com aquela temperatura de queimar os dedos e a língua, onde manteiga se
derrete, se chama de “pão fresco”?
By me
domingo, 13 de dezembro de 2020
Tal como Diógenes
Esta fotografia já tem uns quantos anitos.
Foi feita a pensar em Diógenes e na sua busca por um homem
honesto.
Recordo ter-me dado uma trabalheira desgraçada e de ter
feito já nem sei quantas tentativas até obter esta.
Desde logo porque estava a trabalhar sozinho, o que
transforma um auto-retrato num trabalho de tentativa e erro e num penoso
exercício de paciência.
Em seguida porque sabia exactamente o que queria e não foi
de todo fácil conseguir uma aproximação sofrível ao que tinha imaginado.
Depois porque estive a trabalhar com flashs portáteis, sem
luz de modelação. Saber com rigor onde incidem e que sombras provocam implica
experiência, imaginação e paciência.
Acrescente-se que o jogo de intensidades entre um flash e a
luz de uma cadeia é algo complicado de obter, mesmo medindo e voltando a medir.
Some-se-lhe a necessidade de o candeeiro não provocar sombra
no rosto e de a luz correspondente passar sob o braço não incidindo neste foi
trabalho insano para quem posa, desmonta posição para ver o resultado e
regressa à posição com algumas correcções.
Por fim, o equilíbrio de contrastes para que o candeeiro
tivesse algum detalhe e se percebesse de que material era feito.
Não foi trabalho fácil e, confesso, não me deixou
inteiramente satisfeito. Mas, ao fim de algumas horas, a paciência
esgotou-se-me.
Mas ainda hoje procuro um homem honesto, tal como Diógenes.
By me
Sugestão
“Bem vindo Mr. Chance”, ou “Being there” no seu título
original, é um filme fora de série. Realmente fora de série!
Pese embora fazer parte da minha videoteca, há anos que não
o via e tive o prazer de o rever esta noite, numa estação de televisão
portuguesa.
Recomendo-o vivamente a todos os que não passaram pela
experiência.
Imagem: frame do filme exibido
sábado, 12 de dezembro de 2020
Interpretações
Excepção feita às listas telefónicas e aos formulários e
minutas oficiais, quase todo o trabalho humano pode ter duas ou mais
interpretações. Umas mais óbvias, outras não tanto. Umas definidas à partida
por quem ou faz, outras apenas descobertas por quem vê o resultado final.
Os trabalhos criativos não são excepção, talvez mesmo o
oposto, sendo o expoente máximo da subjectividade. Quer se trate de pintura,
escrita, fotografia, performances como música, teatro, bailado… Até mesmo a
arquitectura tem essa característica, muito para além da estética e
funcionalidades aparentes.
Tenho a desventura de não ser nada digno de nota nem na
escrita nem na fotografia, pelo que tenho completar uma com a outra e
vice-versa. Mas, e sem sombra de dúvida, que o que de pobre vou fazendo tem
sempre mais que uma leitura ou interpretação possíveis ao dar por findo o
processo criativo. E para além daquilo que quem veja ou leia encontre por si
mesmo.
Por vezes há que contar histórias que não podem ou não devem
ser contadas e a parábola é um subterfugio para a necessidade de contar. Por vezes
é o deixar algo de fora propositadamente, tanto na fotografia quanto no texto,
para que leitor ou espectador possa completar e criar a sua própria imagem e
história.
Por vezes ainda, há que “passar recados” ou “dar lições” sem
que isso se sinta de imediato e sem ferir susceptibilidades.
Outras ocasiões, não tenho o poder de síntese quanto baste e
o resultado é essa mesma multiplicidade de interpretações.
Em qualquer dos casos, e enquanto autor (fraco mas autor),
fico satisfeito quando é encontrada uma qualquer história, mesmo que não alguma
das originais. Se alguma reacção acontece, mesmo que não a prevista ou mesmo
que negativa, isso quer dizer que de algum modo comuniquei com que vê ou lê.
Que de algum modo saí da trivialidade e consegui que alguém pensasse ou
sentisse algo.
E isto para mim é uma vitória.
By me
Tradições
Esta história tem já uns dez anitos, mais dia menos dia em Dezembro, mas nesta coisa de tradições natalícias tem cabimento.
Eu estava encostado ao balcão do café da minha rua, à espera do “banheira e hambúrguer”, código privado ali criado para um café cheio e um pão de deus com queijo e manteiga. Rotinas.
Entrou um dos carteiros que faziam a rota da rua em que morava. Eram três, à vez, e conhecia-os de trocarmos uns dedos de conversa sobre trivialidades como o tempo, ou fotografia com um deles.
Depois de entregar a correspondência para ali destinada, olhou para mim e comentou:
“Ainda bem que o vejo, que andava a pensar em si. Tenho aqui uma coisa que acho que lhe é destinada.” E metendo a mão no pesado saco retirou uma caixa cúbica, aí com uns 20 cm de lado. “Vem do estrangeiro, parece-me”.
Fixe! Baril! Ganda pinta! Afinal o tipo das barbas brancas também recebe encomendas do Polo Norte!
Bem, não seria do Polo Norte, mas tão só do norte, da Grã Bretanha para ser exacto. Mas era lá de cima, do norte e do frio, prontos.
Acrescentou o bom do homem que a letra correspondente ao apartamento não estava bem legível e que poderia ter várias interpretações. E que, em o comentando com colegas lá na central de distribuição, um deles alvitrara que poderia ser para mim, o tipo das barbas e da fotografia. E era, mas achei graça que os carteiros me conhecessem pelo nome num bairro dormitório suburbano e num prédio com 96 apartamentos.
Dentro da caixa, que abri logo ali, estava isto: uma bela de uma objectiva fotográfica.
A sua alcunha era “travelling 28” e era propriedade de um membro de um grupo de fotografia na web de que eu fazia parte. E fora proposto que esta banal 28mm circulasse pelos membros aderentes ao desafio, em diversos países e continentes, e que cada um fotografasse com ela. Em terminando o périplo regressaria ao dono.
Quando aceitei o desafio imaginei algumas a fazer, nos quinze dias em que “brincaria” com ela, pese embora possuísse uma quase igual, apenas um nico mais antiga. E estava a reservar-me para ela, que não tinha graça subverter um projecto colectivo como este.
Não recordo já para quem a enviei em terminando o prazo: ou foi para um Islandês, o único com esta nacionalidade no grupo, ou foi para um Australiano, terminando comigo a aventura europeia da “travelling 28”.
Em qualquer dos casos, sei que passados meses regressou a seu dono, numa fraternidade rara nos tempos que correm, entre gente que apenas se conhecia das trocas de mensagens e experiências num fórum global.
Fosse como fosse, e como natal é quando um Homem quiser, naquele ano chegou mais cedo, no café, e abri a prenda antes da data habitual.
Boas festas com ou sem prendinhas.
By me
quinta-feira, 10 de dezembro de 2020
A aliança
Um
photógrapho é um recolector das histórias dos outros. Um cronista também.
Diferencia-os a luz da tinta. Mas que dizer de um photocronista?
Esta
história, que aqui grafo tal como me recordo da sua oralidade, foi-me contada
em primeira-mão:
“Vivia
sozinho e o meu orgulho impedia-me de ir pedir ajuda aos pais, apesar de,
naquela altura, os pagamentos da empresa onde trabalhava estarem atrasados.
Naquele dia não tinha dinheiro nem para tomar um café. Revirei tudo em casa em
busca de uma moedinha que fosse e nada.
Acabei por
me meter no carro e ir a casa de uma amiga, que me poderia emprestar algum,
pouco, para os dias que ainda faltavam até vir o guito.
Mas acabei
por me enganar no caminho e entrei na via-rápida no sentido oposto. Com a pouca
gasolina que tinha, não sabia se daria para inverter a marcha mais à frente, pelo
que decidi continuar e ir a casa de uma outra amiga, que me haveria de ajudar.
Não estava
em casa. Mas estava lá uma amiga dela. Não nos conhecíamos, mas já ouvíramos
falar um do outro. Ajudou-me.
É hoje a
minha mulher.”
E se isto
não é uma bonita história de necessidade, coincidências, solidariedade e final
feliz, adequada a qualquer época em geral, incluindo a que atravessamos, não
sei o que o será.
Nota
adicional - Esta fotografia é da mão e
da aliança de um dos dois protagonistas da história contada. Não é uma grande
fotografia, mas foi o que consegui fazer quando o encontrei de novo, por entre
os afazeres do ofício.
Poderia
talvez fazer uma melhor, quiçá usando a minha própria aliança e melhor trabalhando
luz e fundo. Mas não seria factual, podendo sê-lo.
Mas entre
uma fraca fotografia factual e uma boa fotografia fictícia, prefiro a primeira.
Que, mais importante que uma “boa” fotografia, para um photocronista importa a
realidade. Ou passaria a ser um photorromancista.
Além do mais a minha aliança tem outras histórias que, por
enquanto, guardo para mim.
By me
terça-feira, 8 de dezembro de 2020
Fotografia
“A luz é a minha matéria-prima e a perspectiva a minha ferramenta”
A frase é minha e é curioso como ela me descreve.
Tanto no que concerne factualmente às minhas actividades
profissionais e lúdicas quanto ao simbólico dos termos: a luz enquanto fonte de
saber, a perspectiva (ou ponto de vista) enquanto dialética.
Tenho para mim que em fotografia quem não se preocupar com a
luz e a perspectiva, tanto factual quanto simbólica, seguindo os academismos ou
experimentando até à exaustão, pouco mais será que um fotocopiador do universo
que o cerca.
Em qualquer dos casos, e apesar de a fotografia também ser
uma forma de comunicação, importa acima de tudo que quem a pratica encontre
satisfação no que faz. O resto serão modas, negócios e egos.
By me
segunda-feira, 7 de dezembro de 2020
As camisas e a ética
Foi há uns trinta e tal anos, não posso precisar.
Fui contratado por uma agência para fazer as fotografias de uma campanha publicitária de uma fábrica de camisas. Um trabalho de envergadura, com produção complexa, que envolvia fotografar modelos em locais alugados, o produto acabado em lojas e a fábrica em laboração.
Fotografado em formato 9x12, com uma câmara Linhof que havia comprado pouco tempo antes.
Quando o trabalho me chegou às mãos já quase tudo estava combinado entre o produtor e o cliente, ficando a meu cargo as questões técnicas e estéticas, e pouco de publicidade ou comunicação.
O trabalho correu mais ou menos bem, com alguns episódios caricatos e algumas falhas da minha parte, mas que fui resolvendo como podia.
O último dia de produção era na fábrica. A mais complicada em termos de luz, considerando a enormidade do espaço: uma nave grande, cheia de gente a costurar, com uma mistura de luz natural entrada pelas janelas e telhado e luz fluorescente vinda do tecto. Um pesadelo, se considerarmos que o trabalho era a cores e não havia photoshop para correcções posteriores.
Enquanto o produtor e o cliente ficavam à conversa, eu passeei-me pelo espaço, tentado senti-lo: máquinas, pessoas, luz, acções…
E apercebi-me de sorrisos constrangidos das senhoras que iam costurando ou cortando as peças de tecido. Fui metendo conversa com elas.
Fiquei sabendo que tinham sido avisadas da nossa vinda, que haveriam de vir com uma bata lavada e penteadas para as fotografias. Mas bastantes, algumas com idade para serem minhas avós, não queriam ser fotografadas. Ou por timidez, ou porque não gostavam da forma como ali eram tratadas, ou tão simplesmente porque não gostavam de fotografias. Sempre em tom baixo de conversa, não fosse serem ouvidas.
Eu era ainda puto, a experiência reduzida e o trabalho poderia lançar-me para outros voos. Mas aquilo foi-me batendo forte. Muito forte! Eu iria fotografar gente que não queria ser fotografada mas que era obrigada a isso pelo patrão. Não gostei. Nem um nico!
Regressei para junto do grupo que me aguardava: O dono da fábrica, a sua secretária, o produtor e o Jorge F., o meu assistente, inigualável no seu desempenho, que me entendia e me completava nas tarefas como nenhum outro com quem trabalhei. E disse-lhes que o trabalho não podia ser feito como combinado.
Ficaram a olhar para mim com ar espantado. E expliquei com argumentos técnicos e estéticos que não iria ser possível fazer boas imagens com a presença humana, já que ficariam tremidas ou com cores estranhas e que a solução seria fotografar a fábrica e a maquinaria por pedaços em vez de por inteiro e sem a presença das operárias.
A discussão foi renhida, entre mim, o dono da fábrica e o produtor. De parte, o Jorge, junto da tralha entretanto já descarregada, olhava para mim e sorria discretamente. Disse-me, mais tarde, que havia percebido o que eu queria com aquilo.
Acabei por ganhar a batalha. Afinal, mesmo sendo puto, eu era o “expert” na coisa e aquilo que propunha não iria alterar em muito o conjunto do projecto inicial. E, depois do almoço, a produção parou por algumas, não muitas, horas.
As imagens foram feitas, com as máquinas bonitas, brilhantes e eficientes, com peças a meio do tratamento tanto de corte como de costura ou dobragem e embalamento. Mas sem ninguém contrariado nelas. Nem com sorrisos contristados nem com mãos calejadas ou com cicatrizes.
Quando, no final dos trabalhos, estávamos a arrumar a tralha e as operárias regressaram às suas máquinas, os sorrisos de algumas pagaram muito bem pago o só ter feito mais um trabalho, já agendado, para este produtor.
Ainda hoje as recordo.
Nota extra: A fotografia não da época. Os originais, em diapositivo 4x5, foram entregues ao cliente na altura. Esta foi feita ali, a correr, para acompanhar o texto.
By me
sábado, 5 de dezembro de 2020
Imagens com nível
A questão da fotografia recorrendo ao enquadramento integral e fazer disso um estilo de imagem, é velha.
Não querendo entrar em polémicas, entendo que é pouco prático e que a maior parte das pessoas não o usam. E, em democracia, a maioria tem razão.
O problema levanta-se, desde logo, porque raros são os laboratórios que imprimem integralmente as imagens que lhes entregamos. E como os formatos de papel standard não é consentâneo com o formatos da câmaras, algo será “cortado”, na horizontal ou na vertical.
Em seguida, temos que a imagem original raramente é vista. Exceptua-se o diapositivo (ou slide). Todo o processo digital implica converter a imagem formada sobre o sensor em impulsos eléctricos, estes em códigos digitais, estes em impulsos eléctricos que, por sua vez, serão transpostos para o papel ou para um ecrã. Em tudo isto, há sempre intermediários, automáticos ou não, que alteram ou mesmo subvertem o resultado da passagem da luz através da objectiva.
Considerando tudo isto, o uso de editores de imagem que acrescentem, retirem, ajustem, melhorem aquilo que o fotógrafo quis fazer aquando da obturação é aceitável.
Diria mesmo que recomendável, quando não conseguimos nessa altura aquilo que queremos mostrar. Ou porque nos falhou qualquer detalhe técnico ou porque é essa alteração que irá fazer passar a mensagem ou sentimento que se quer.
É exactamente por isso, por ser possível e por ser recomendável, que me incomoda, me faz saltar a tampa, me faz mesmo evitar ver as imagens que têm o raio do horizonte torto. Muito principalmente quando esse horizonte é no mar.
Sabemos que a linha do horizonte não é uma recta mas antes uma curva, já que o planeta é quase esférico. Mas estar o mar a tombar para a esquerda ou para a direita… Não só denuncia que esse detalhe não foi considerado na tomada de vista como também não foi visto no tratamento posterior.
Claro que o mar pode estar torto propositadamente. Interpretação subjectiva sobre um qualquer assunto. Infelizmente, imagens dessas serão menos que 0,0001% de todas as fotografias que têm o mar torto.
E, para aqueles que lêem este meu desabafo meio cáustico, fica uma pergunta: aceitam ter em casa, ou numa exposição, um quadro pendurado ligeiramente torto? Ou está direito ou está assumidamente de lado.
Ver um quadro assim, na parede, dá vontade de o ir endireitar. Tal como dá vontade de endireitar o mar descaído de certas fotografias.
By me
terça-feira, 1 de dezembro de 2020
A fotografia
“Ou então pegas num álbum de fotografias, um álbum qualquer de uma pessoa qualquer, como eu, como tu, como toda a gente. E dás-te conta que a vida está ali nos diferentes segmentos que aqueles estúpidos segmentos de papel encerram sem a deixar sair dos seus acanhados limites. E no entanto a vida é coisa prenhe, impaciente, quer ir mais além daquele rectângulo, porque sabe que aquele menino vestido de branco, de mãos postas e com a fita da primeira comunhão no braço, amanhã (digo “amanhã” só para dizer um dia qualquer) há-de chorar às escondidas com vergonha de si próprio: uma pequena torpeza? Pequena ou grande, pouco importa, porque ela implica o remorso, e é dele que estamos a falar. Mas aquela fotografia feroz, mais severa que um vigilante, não deixa que a verdadeira verdade fuja dos seus escassos centímetros. A vida fica prisioneira da sua representação: serás o único a lembrar-se do dia seguinte.”
O título é meu, a fotografia também, mas o texto é de António Tabucchi, no seu livro “Está a fazer-se cada vez mais tarde”