domingo, 15 de novembro de 2020

Coisas velhas

 


 

As memórias são como as cerejas: surgem umas atrás das outras.

Hoje recordei tempos antigos porque vi, mostrei e discorri em torno de uma fotografia antiga dos meus tempos de escola.

E, com essas memórias, outras vieram, no mesmo local e tempo, ligadas a algumas outras posteriores.

Esta escola primária era pequena e instalada num rés-do-chão de um prédio. O pátio de recreio acontecia nas trazeiras, de terra batida e onde existia uma árvore que não recordo ter tido folhas, pelo que presumo estar morta à época.

Os alunos distribuiam-se por duas salas, uma para a primeira e segunda classes, outra para a terceira e quarta. Eramos todos rapazes, normal nesses tempos, excepção feita a uma menina, que era filha da dona e directora da escola. Recordo o seu nome mas, a bem do bom recato, aqui não o referirei, tal como nenhum outro. Nem mesmo o da funcionária da escola que, anos passados e já no liceu, continuei a visitar até que faleceu já velhinha.

O que também recordo foi a inconsequência de actos pouco recomendaveis que ali aconteciam. Refiro-me, muito concretamente, a dois irmãos que partilhavam a sala comigo. Terríveis e muito solidários entre si, juntavam-se com mais um ou dois para agredirem aqueles que não “alinhavam” nos seus esquemas.

Lembro, quase como que de ontem, o amarrarem algumas das suas vítimas (eu fui uma delas) na árvore, aquando dos intervalos, e açoitarem-nos com os cintos. Ou usarem pedras nas mãos quando resolviam as coisas sem amarras, com os seus cúmplíces a impedirem os demais de pararem os “massacres”. A coisa era feia!

E recordo uma ocasião em que me foram buscar à escola, que sangrava da cabeça e do nariz, e de me perguntarem porque não tinha eu reagido também com violencia. E de eu ter respondido que a pancadaria não resolvia as coisas e que eu não bateria em ninguém.

Anos mais tarde vim a encontrá-los no liceu. Todos nós já mais velhinhos e mais “sabidos” Tinham eles um “regimento” de seguidores e a sua técnica era mais requintada: mandavam os demais “arrear” nas vítimas, ficando eles de parte a assistir e ficando impunes, se houvesse investigação. De uma dessas vezes deram-se mal, comigo. Quando me apercebi que “ía sobrar para o meu lado”, evitei os enviados e ataquei a sério, na mesma moeda, um dos mandantes. Foi remédio santo, para mim, que não mais me importunaram.

Nos entretantos, acontece a revolução de Abril e as nossas vidas apartaram-se, com a minha mudança de liceu. Mas mantive-me mais ou menos atento ao que no anterior se passava.

E fiquei sabendo que esses irmãos foram mais que uma vez detidos por militares primeiro, por polícia depois, devido a acções violentas entre os estudantes liceais, naqueles tempos conturbados. Sempre com acusações de “contra-revolução” e, constava, com armas evolvidas.

Os anos passaram, muitos. E, há coisa de uns dois ou três anos, sou surpreendido com uma entrevista televisiva. O entrevistado era alguém que lutava por um lugar numa instituição bem conhecida no país. Não o reconheci pela imagem. Mas o nome acordou-me memórias velhas, e a voz parecia-me familiar. Fui investigar, que a net dá-nos muitas informações uteis. Era mesmo um desses irmãos. Prestei atenção.

O discurso era actual, sobre os temas em causa e denotavam um saber estar em altos postos. Mas, bem lá no fundo, e para quem lhe conhecesse o passado, não podia deixar de sentir a violência antiga quase selvagem, agora bem controlada com a experiência e a vida.

Felizmente, para a institução a que se propunha dirigir e para as demais que com ela se envolvessem, não conseguiu os seus intentos.

 

A memória é terrível e, estimulada ou não por fotografias, sons ou conversas, não morre. Mesmo que muito antiga. Fica adormecida algures num canto até que a vamos buscar e usar. E nem sempre é o melhor que recordamos.


By me

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