As
memórias são como as cerejas: surgem umas atrás das outras.
Hoje
recordei tempos antigos porque vi, mostrei e discorri em torno de uma
fotografia antiga dos meus tempos de escola.
E, com
essas memórias, outras vieram, no mesmo local e tempo, ligadas a algumas outras
posteriores.
Esta
escola primária era pequena e instalada num rés-do-chão de um prédio. O pátio
de recreio acontecia nas trazeiras, de terra batida e onde existia uma árvore
que não recordo ter tido folhas, pelo que presumo estar morta à época.
Os alunos
distribuiam-se por duas salas, uma para a primeira e segunda classes, outra
para a terceira e quarta. Eramos todos rapazes, normal nesses tempos, excepção
feita a uma menina, que era filha da dona e directora da escola. Recordo o seu
nome mas, a bem do bom recato, aqui não o referirei, tal como nenhum outro. Nem
mesmo o da funcionária da escola que, anos passados e já no liceu, continuei a
visitar até que faleceu já velhinha.
O que
também recordo foi a inconsequência de actos pouco recomendaveis que ali
aconteciam. Refiro-me, muito concretamente, a dois irmãos que partilhavam a
sala comigo. Terríveis e muito solidários entre si, juntavam-se com mais um ou
dois para agredirem aqueles que não “alinhavam” nos seus esquemas.
Lembro,
quase como que de ontem, o amarrarem algumas das suas vítimas (eu fui uma
delas) na árvore, aquando dos intervalos, e açoitarem-nos com os cintos. Ou
usarem pedras nas mãos quando resolviam as coisas sem amarras, com os seus
cúmplíces a impedirem os demais de pararem os “massacres”. A coisa era feia!
E recordo
uma ocasião em que me foram buscar à escola, que sangrava da cabeça e do nariz,
e de me perguntarem porque não tinha eu reagido também com violencia. E de eu
ter respondido que a pancadaria não resolvia as coisas e que eu não bateria em
ninguém.
Anos mais
tarde vim a encontrá-los no liceu. Todos nós já mais velhinhos e mais “sabidos”
Tinham eles um “regimento” de seguidores e a sua técnica era mais requintada:
mandavam os demais “arrear” nas vítimas, ficando eles de parte a assistir e
ficando impunes, se houvesse investigação. De uma dessas vezes deram-se mal, comigo.
Quando me apercebi que “ía sobrar para o meu lado”, evitei os enviados e
ataquei a sério, na mesma moeda, um dos mandantes. Foi remédio santo, para mim,
que não mais me importunaram.
Nos
entretantos, acontece a revolução de Abril e as nossas vidas apartaram-se, com
a minha mudança de liceu. Mas mantive-me mais ou menos atento ao que no
anterior se passava.
E fiquei
sabendo que esses irmãos foram mais que uma vez detidos por militares primeiro,
por polícia depois, devido a acções violentas entre os estudantes liceais,
naqueles tempos conturbados. Sempre com acusações de “contra-revolução” e,
constava, com armas evolvidas.
Os anos
passaram, muitos. E, há coisa de uns dois ou três anos, sou surpreendido com
uma entrevista televisiva. O entrevistado era alguém que lutava por um lugar
numa instituição bem conhecida no país. Não o reconheci pela imagem. Mas o nome
acordou-me memórias velhas, e a voz parecia-me familiar. Fui investigar, que a
net dá-nos muitas informações uteis. Era mesmo um desses irmãos. Prestei
atenção.
O discurso
era actual, sobre os temas em causa e denotavam um saber estar em altos postos.
Mas, bem lá no fundo, e para quem lhe conhecesse o passado, não podia deixar de
sentir a violência antiga quase selvagem, agora bem controlada com a
experiência e a vida.
Felizmente,
para a institução a que se propunha dirigir e para as demais que com ela se
envolvessem, não conseguiu os seus intentos.
A memória
é terrível e, estimulada ou não por fotografias, sons ou conversas, não morre. Mesmo
que muito antiga. Fica adormecida algures num canto até que a vamos buscar e
usar. E nem sempre é o melhor que recordamos.
By me
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