domingo, 28 de fevereiro de 2021

Photomaton


 


Ver o termo “Photomaton” aplicado a reportagens televisivas com alguns minutos e alguma profundidade de assunto incomoda-me.

Caramba! O Photomaton surgiu como máquinas automáticas para fazerem fotografias de retrato para documentos. Sentar no banco, ajustar a altura pelo espelho, meter as moedas e esperar pelos disparos do flash.

Inócuas, impessoais, sem um pingo de criatividade. Nem na perspectiva, nem na luz. Tão assépticas quanto um tudo de ensaio esterilizado.

Claro que gente houve (e creio que há) que tirou partido da total privacidade da cortina corrida para fazer diferente. Bem diferente. Ousadamente diferente, em alguns casos.

Mas sempre a frieza do automatismo do maquinismo, da ausência de fotógrafo, do “standard” da perspectiva e luz.

E, ainda em torno das “Photomaton”, o que sobre isso nos é contado no magnífico filme “O fabuloso destino de Amélie”, de Jean-Pierre Jeunet. O mistério da estranha colecção, o cartaz da mascarada, os quatro retratos que falam entre si…

Ocasionalmente ainda encontramos um Photomaton em alguns corredores de metro, mas já ninguém lá vai para o cartão do cidadão, que agora é ainda mais impessoal: meramente electrónico, sem suporte em papel que se possa guardar de recordação, uma das quatro entregues na lateral da cabine e que havia que esperar que secassem. Aquela loja em frente ao antigo arquivo de identificação era uma mina de dinheiro e um manancial de retratos. Concorrência, então moderna, ao fotógrafo de bairro.

O “Photomaton” é, queiram-no ou não alguns fantasiosos, um termo de retrato instantâneo, maquineta com banco, flash e cortina.

Agora nome de rubrica de reportagem televisiva…

Abastardamento da memória de todos ou quase todos os portugueses com mais de 30 anos.

Que os deuses da fotografia perdoem quem teve tal ideia!

Que eu não posso.


By me

Ares


 


Porque me pediram a opinião sobre um conjunto de fotografias, acabei por “dar ao dedo” e escrevinhar o que abaixo se encontra. Talvez que, para muitos, seja mais que sabido. Mas talvez que para alguns seja novidade.

 

Eis uma brincadeira que costumo fazer, quando estou com um grupo de gente e estamos a falar de imagem, composição, estética, comunicação… essas coisas. E que tanto é válido em ambientes formais como em informais.

Tento descrever uma situação hipotética: um trajecto numa carruagem de metropolitano. No centro da cidade, em antevéspera de Natal, fim da tarde. As composições vão à pinha, entre gente e embrulhos bonitos, dentro ou fora de sacos.

E peço aos presentes que simulem estar na mesma carruagem nessas circunstâncias: de pé, agarrados aos varões, chocalhando ou não.

E, enquanto eles mimam situação, eu ralho com eles: é garantido que, nas condições descritas, não vão ter todo aquele espaço entre eles. E insisto que reproduzam o que supõem que aconteça, todos bem encostadinhos uns aos outros, no aperto de uma carruagem de metro super apinhada.

Aqui fazem-no e o resultado é o esperado, que trato de lhes fazer notar: por muito próximos que estejam, corpo com corpo, é certo e sabido que voltam a cara para o lado, garantindo uns vinte centímetros livres em frente do nariz. Mesmo que fiquem com ele apontado para o ombro.

Passada a brincadeira e o momento de aperto, explico-lhes sem mais delongas: todo o ser vivo (e até os objectos inanimados) têm um espaço próprio, que lhes pertence. Espaço esse que é sagrado e cuja intrusão ou é consentida (afago, maquilhagem, dentista…) ou é considerado uma agressão, que se evita.

Por outro lado, pouco nos importa o espaço que exista nas costas. Mais perto ou mais longe, e a menos que haja uma eventual situação de perigo, não lhe damos importância alguma.

A este espaço próprio damos o nome de “ar”. O “ar” que cada um necessita para respirar ou existir.

Na feitura de imagem, animada ou não, este espaço ou ar deve ser respeitado. Entenda-se, no entanto que o termo “deve” é relativo: pode não ser respeitado, sendo que mesmo isso tem significado.

Em termos práticos, imagine-se alguém de perfil. Com pouco espaço em frente do nariz, igual ou inferior ao que tenha atrás da cabeça, e haverá uma sensação de aperto, de abafamento, de falta de ar. Mas bastará que lhe seja dado mais ar em frente do nariz e logo passará a ter uma espécie de conforto.

O mesmo se passa com objectos. Inanimados ou não. Ver um ciclista em andamento com mais ar atrás que à frente e a interpretação que será dada, as mais das vezes, será a de que irá “estampar-se” na berma do enquadramento. Por outro lado, em tendo mais ar à sua frente, sentiremos que está andar e que está tudo bem.

Mesmo um objecto inanimado necessita de ar. Uma cadeira, por exemplo, é usada pela frente, pelo lado oposto às costas. E, a menos que haja alguma mensagem meio escondida, se quisermos dar conforto a essa cadeira, haverá que respeitar esse espaço à frente da cadeira. Tal como um copo, com espaço acima, do lado da boca e não em baixo, na base.

Não há fórmulas absolutas nem regras inquebráveis. Há, antes sim, a necessidade de o produtor de imagem saber como ela é interpretada pelo público em geral e agir em conformidade. Presumindo que o objectivo da imagem é comunicar, agradando de algum modo a quem veja o trabalho.

Na sequência disto – de tudo ter um “ar” que lhe é próprio - acaba-se por chegar à conclusão que o centro da imagem será, talvez, o local menos “certo” para colocar algo. A menos, claro, que o “ar” em causa seja direccionado para a objectiva e que mais nada exista em redor que necessite de equilíbrio.

 

Em termos de exercício ou brincadeira, escolham num qualquer objecto. Pequeno ou grande, amovível ou não. Estudem-no ou analisem-no de modo a perceber de que lado e como é usado. E fotografem-no diversas vezes, umas respeitando esse “ar”, outras negando-o.

De seguida, consultem gente que não sabe do exercício e questionem-nos sobre qual das imagens é mais agradável, mais tranquila, mais estável. Ou, de outra forma, confrontem-nos com quatro ou cinco imagens e peçam para que escolham uma, justificando se possível.

Talvez que cheguem a algumas conclusões elucidativas de como as imagens são lidas em geral e de como podemos nós, quebrando o normal, conduzir o espectador a leituras e emoções controladas por nós.

 

Os meus cinco cêntimos.

 

By me

O ovo ou a galinha?


 


O que surgiu primeiro: o ovo ou a galinha?

O que é mais importante: a informação que os media querem vender ou a informação que o público quer consumir?

Os media procuram vender. Mais unidades e em mais quantidade que os seus concorrentes. Logo, vão atrás dos “gostos” do público.

O público usa a informação como forma de exorcizar os seus males, satisfazendo-se com o sucesso dos seus heróis e minimizando os seus males com a grandeza dos males dos outros.

Mas o público não quer ser informado em profundidade sobre as vitórias dos heróis. Porque sabe que cada vitória é consequência de muitas derrotas, e de derrotas está ele cheio no dia-a-dia.

E o público não quer saber das origens e consequências dos males dos outros, com receio de neles encontrar os seus próprios males, aqueles que o atrapalham e incomodam, e de poder antever o dia seguinte.

E como ninguém é herói todos os dias, o herói de hoje é o esquecido de amanhã, que novos heróis serão descobertos pelos media. Que se não tiverem novos heróis a apresentar, venderão menos e terão menos lucros, que ter lucro é o seu objectivo.

E como falar dos males em profundidade é remexer em feridas dolorosas, há que evitar essas dores, que ninguém compra produtos que provoquem dores agudas e prolongadas, e ter lucro é o seu objectivo.

A missão do comunicador contemporâneo (seja ele de texto, som, imagem ou ideias) é encontrar todos os dias novos heróis, novos males, que ajudem na facturação da empresa onde trabalham. Como esta facturação depende, em boa medida, da facturação da concorrência, há que ir mais longe, há que ser mais apelativo, há que mostrar ao público que os novos males que se mostram são mais maus e mais distantes, que os novos heróis que se exibem são mais dignos e mais credíveis.

Deixou de ser importante fazer, como nos juramentos de tribunal dos filmes americanos, “a verdade, toda a verdade e nada mais que a verdade.” Na concorrência dos media, apenas a “a verdade” tem algum peso (e não muito!). “Toda a verdade” deixou de ser importante, porque incómoda para o público e cara na produção. Já o “Nada mais que a verdade” depende dos conceitos éticos de quem produz, nem sempre os mais recomendáveis.

Assim, a relação entre os media e o público tornou-se (e é!) uma relação simplista em que um vende e o outro compra produtos para aliviar consciências e incómodos quotidianos. Tal como a botica vende pomadas para o lumbago e pensos para os calos.

A missão do jornalista ou do técnico de comunicação deixou de ser (se alguma vez foi) intervencionista na sociedade para ser a de fabricante de notícias, com a conta certa de dor e prazer no público para o manter como consumidor fiel.

E o público deixou de querer (se alguma vez quis) estar alerta sobre o que o cerca, restringindo-se ao seu pequeno mundo doméstico e familiar. Procura na informação os paliativos para as suas maleitas, não se preocupando com as suas causas nem com o prevenir de novas.

Alguns há, honra lhes seja feita, que não se encaixam neste consumismo informativo. Pessoas há que procuram saber mais e mais fundo, comunicadores há que procuram contar e explicar tudo sobre cada tema e sobre todos os temas. Mas como estas atitudes são cada vez em menor número, este circuito produtor/consumidor é cada vez mais marginal, talvez condenado à extinção.

 

Está em nós (produtores) e em nós (consumidores), não permitir que esta estupidificação no conhecimento do mundo que nos rodeia grasse como uma pandemia fatal!

 

By me

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Pedido de ajuda aos linguistas e “cotas”

 



Numa publicação numa rede social e para minha surpresa, encontro isto:

 

“Nos intervais / Das corridas de cavais / As meninas dos asis / Comem caraméis / Embrulhados em papéis / Azuis e amaréis.”

 

Conheço isto quase desde que sou gente, de tradição oral familiar. Mas é uma tradição muito restrita que, de cada vez que tenho isto usado em público, em redor olham para mim como se tivesse dito um disparate. Que disse, entenda-se.

Nunca isto encontrei em nenhuma obra escrita, e teria que ser de algum autor português e não numa tradução de qualquer outra língua. Tal como, dando umas voltinhas na web também não encontro nenhuma referência.

Pela idade que isto tem na minha memória terá que ser anterior aos anos 50 do séc. passado. Pelo próprio conteúdo, mesmo com o português corrigido, eu diria que é posterior ao início desse séc. E arriscaria mesmo a dizer que terá surgido no segundo quartel. Possivelmente em meio urbano.

Poderia ainda alvitrar que possa ter origem como piada num filme dos “anos dourados” do cinema português ou, em alternativa mais provável, como canção num palco de revista.

E, tratando-se de uma lenga-lenga com aberrações de língua, parece-me se difícil que faça parte de tradições infantis ou escolares.

Ficam, assim, algumas perguntas:

Alguém conhece isto?

Alguém saberá ou terá alguma pista sobre a origem disto?

Convenhamos que a importância disto é diminuta.

Mas é uma dúvida que se me surgiu e não gosto lá muito de andar com pontos de interrogação acima da cabeça.

Agradeço a ajuda.


By me

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Ser ou não ser


 


Texto e fotografia de arquivo que, com maior ou menor  actualidade técnica, continua a ser válido.

 

Um dos atributos do ser humano, enquanto ser vivo, e considerado o mais positivo, é, simultaneamente, um dos que o mais prejudica: a capacidade de comunicar elaboradamente!

Esta comunicação (efémera se falada ou gestual, permanente se materializada por símbolos ou formas), ao fazer expressar pensamentos igualmente elaborados, permite-nos criar o conceito de Bem e de Mal, de Verdade e de Falsidade.

E desde que estes aspectos se tornaram evidentes e importantes na actividade humana, tentaram-se encontrar formas de dar credibilidade à comunicação, definindo verdade e mentira, aplaudindo uma, censurando a outra.

O conceito de honra é uma dessas formas, onde não apenas se cumpre e faz cumprir códigos de conduta rigorosos, como se afirma por verdadeira cada afirmação emanada de um homem honrado. A falta de honra ou o apodo de mentiroso é dos piores estigmas que a sociedade pode impor ao indivíduo.

Esta necessidade da verdade é tão grande que os tribunais, criados para apurar a verdade e corrigir as injustiças ou actos delituosos, o falar verdade é vital. É um estereotipo do cinema norte-americano o jurar-se em julgamento “Falar a verdade, toda a verdade e nada mais que a verdade”. E remata-se isto com o testemunho de “Deus”, que é o último refúgio da verdade inquestionável, mas igualmente não demonstrável.

Será curioso de ver como serei tratado um dia que tenha que prestar testemunho num desses tribunais, eu que sou agnóstico.

A afirmação da verdade é vital para o ser humano que usa testemunhos, exemplos, demonstrações, como eu estou agora aqui mesmo a fazer com estas linhas.

A verdade ou credibilidade da comunicação é, assim, a pedra de toque da sociedade e, em quebrando-se, desmorona-a.

 

Confrontado com alguma forma de comunicação, o Homem procura, em primeiro lugar, saber da sua credibilidade. Quer se trate de verbalização, escrita ou iconografismo.

Claro está que ninguém põe em causa uma pintura. Presume-se que ela, e o seu autor, não pretendem ser verdadeiros ou falsos. São um conjunto de símbolos cuja veracidade não importa.

Já com a escrita o mesmo não se passa. Ou bem que pensamos “Isto é credível” ou então “Isto é faz-de-conta”. Presume-se que num jornal não se encontram falsidades, mas definimos outras formas de escrita como “ficção”. E, se por acaso, se constata que num jornal constam falsidades, é um “Ai Jesus”, com acusações recíprocas e recurso aos tribunais para repor a verdade. E a credibilidade do jornal vai por água abaixo.

Na 7ª arte – o cinema - e no seu sucedâneo – a televisão – existem três categorias de credibilidade: o que é inquestionavelmente verdade (informação), o que é indubitavelmente ficção (séries, filmes, novelas, etc) e o que, sendo verdade, usa palavras ou imagens falsas ou falseadas (documentários). Ninguém acredita que um cineasta esteja anos a fio a filmar um leão em África para contar a sua história. Acredita-se que eles vivem daquela forma mas sabe-se que as imagens e as palavras são falsas ou falseadas. É um terreno pantanoso, este.

 

Com o surgimento da fotografia, no século XIX, supôs-se que a questão do “verdadeiro” e do “falso” pudesse ser resolvida.

Não sendo objecto de intervenção humana, mas tão-somente usando processos naturais e científicos, a imagem fotográfica assumiu contornos de “indesmentível”. Expressões como “Para mais tarde recordar” ou “O fotógrafo estava lá” são disso exemplo.

Pelo menos no pensar do comum do cidadão. Porque cedo a justiça e os tribunais se aperceberam da possibilidade de manipulação ou falsificação da fotografia, apresentando imagens que não correspondiam à “verdade”, e recusaram-se a aceitá-la como prova para o apuramento da verdade colectiva. A menos que apresentadas por gente cuja idoniedade não seria posta em causa: agentes de autoridade.

Apesar desta desconfiança da justiça em relação à veracidade da fotografia, continuámos a dar-lhe o benefício da dúvida. Pelo menos em parte, dependendo do contexto onde ela se insere.

Presumimos como sendo verdadeiro testemunho da verdade se inserida num periódico em que acreditamos ou ao qual não atribuímos a possibilidade de nos mentir. Tanto assim é que os jornalistas ou empresários da comunicação quase não dispensam a utilização da fotografia para dar reforço e credibilidade aos textos e mensagens impressas.

Mas pomos essa credibilidade ou veracidade da fotografia em causa quando são usadas em publicidade ou exibidas numa galeria de arte. Das primeiras porque os publicitários não primam por “falar verdade, toda a verdade e nada mais que a verdade”, pelo que o seu trabalho, fotografia incluída, podem e devem ser postas em causa. Das segundas, penduradas numa parede de uma galeria de arte ou publicadas em livros ou revistas conexos, ficamos na dúvida. Se a imagem com que somos confrontados é semelhante à nossa própria experiência, aceitamo-la como verídica; se a achamos ou ao seu conteúdo como estranhas ou dissonantes com as nossas próprias verdades, interpretamo-las como falsas. Mas não nos incomoda, porque numa galeria de arte não esperamos encontrar a “Verdade” mas tão só a expressão do autor, que se pode deixar levar pela imaginação ou fantasia e criar uma “Verdade” que só existe no seu íntimo. E nós, público, entendemo-las como tal.

 

No uso quotidiano do cidadão comum, amador fotográfico ou nem isso, a fotografia foi sempre considerada como um testemunho verídico e credível. As fotografias de férias e passeios, das festas de anos, de grupo ou de família, as feitas na bancada do estádio ou perante um acidente ou catástrofe não são (ou não eram) postas em causa.

O facto do fotógrafo amador não dominar as técnicas “complexas” da fotografia, de apontar e disparar, deixando o resto ao cuidado de laboratórios insuspeitos, dão um carácter de veracidade às imagens que ele produz.

Mas se o fotógrafo é já considerado como conhecedor das técnicas fotoquímicas, já os amigos e familiares, ao olharem para uma fotografia menos comum ou mais surpreendente, perguntam “Isto foi mesmo assim?” ou afirma “Isto tem truque!”

Com o advento da fotografia digital e a facilidade da manipulação e de acesso às ferramentas de tratamento de imagem, a questão da fiabilidade, veracidade ou honestidade da fotografia está cada vez mais posta em causa.

Até mesmo uma inocente fotografia de um pôr-do-sol ou de um salto meio acrobático do filho ou neto é questionável, ouvindo-se quase pela certa “Isto foi montagem?” ou “Usaste o photoshop?”

 

É assim que a fotografia vai rapidamente perdendo o seu carácter de documento fiel (que em boa verdade nunca o foi) e ganhando o seu verdadeiro estatuto de forma de expressão pessoal.

E, com este estatuto, a sua credibilidade é tanto maior ou menor quanto esse atributo é dado pelo seu autor ou exibidor e pelo seu público ou receptor. A honorabilidade da fotografia é tão variável quanto o ser humano, enquanto ser comunicante.

A questão põe-se, então, se se espera que a comunicação seja verdade ou mentira e no grau de credibilidade que damos ao eu autor.

Ou, por outras palavras, se se espera que uma fotografia seja ou não verdadeira.

Da mesma forma que espero que um documento científico ou uma notícia de jornal sejam verídicos, não espero que o “Memorial do convento” de José Saramago ou “Os lusíadas” de Luís de Camões sejam verídicos. Ainda que ambos se baseiem em factos reais, aceito que num romance ou poema o autor dê asas à imaginação.

De igual forma, espero que as fotografias publicadas ou exibidas como sendo ícones de uma realidade, (num jornal, revista ou livro) e apresentadas como tal, o sejam, já não o espero de fotografias cujo objectivo explícito ou implícito seja a expressão de sentimentos do autor, interpretações não de uma verdade factual mas antes sentida.

 

Assim, o atributo de verdadeiro ou falso dado a uma fotografia ou imagem, depende da cumplicidade, de um entendimento prévio entre quem faz e quem vê.

E se o autor ou exibidor não a afirma como verdadeira e se o público não a recebe como verdade, pouco importante é que o seja ou não.

 

Ser ou não ser, neste caso, não é a questão!

 


By me

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Termos e expressões


 


É curioso como empregamos mal expressões e/ou palavras.

Quando dizemos, por exemplo, “não gosto de” estamos a afirmar a negação do sentimento “gostar”. E não a expressar o sentimento oposto a gostar, que será “desgostar” ou “ódio”.

Dizer “não gosto de” será, em boa verdade, dizer que “não se tem uma relação de afecto positivo com” e não “uma relação de afecto negativo com”.

Há pessoas ou situações ou paladares de que não gosto ou me são indiferentes.

E há pessoas ou situações ou paladares que odeio mesmo. Ou desgosto.

A língua portuguesa é muito complicada. Ou somos nós que a complicamos, mal usando termos ou expressões, confundindo sentidos ou sentimentos.

Um pouco como dizer “tirar uma fotografia” ou “fazer uma fotografia”, mas isso são outros contos e significados.


By me

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Limites




Saiba-se que os limites da imagem – o enquadramento – tanto servem para esconder o que está visível como para mostrar o que não está visível.

Depende do estado de alma de quem fotografa e de quem vê.

By me

sábado, 13 de fevereiro de 2021

Fast food




 Digam o que disserem, a grande vantagem da literatura sobre as demais formas de contar histórias (pintura, cinema, fotografia, escultura) é a capacidade de deixar à imaginação de quem a frui tudo aquilo que lá não está contado.

De uma forma genérica assim é. Se eu ler que o homem entrou num restaurante, deixo à imaginação a cor da toalha, o tipo de luz, o formato da cadeira… Ficará até ao critério do leitor se o empregado de mesa é ou não careca. A menos, claro está, que qualquer destes detalhes, ou outros, sejam importantes para aquilo que que o autor e, consequentemente, para o leitor.

Já nas demais formas de contar histórias (ou estórias) esses detalhes têm que estar presentes. Quando o cineasta, ou fotógrafo ou pintor, nos quer mostrar o entrar no restaurante, veremos o dito restaurante, com a cor das toalhas, o tipo de luz, o formato das cadeiras. Até se o empregado é careca, se aparecer na imagem.

Isto deixa pouco à imaginação de quem vê, reduzindo as possibilidades de se fantasiar com base nas experiências ou vivências de quem vê. O restaurante é aquele e ponto final.

É, talvez, este facilitismo que a comunicação plástica nos impõe, este menos exigente esforço de interpretação, que leva a que o consumo de literatura vá sendo menor. Para quê esforçar-me a imaginar se posso deixar-me levar pela imaginação do autor?

Indo mais longe: quando a obra exposta não é explícita (fotografia, cinema, pintura) a reacção generalizada é de não gostar. Ou de não sentir empatia. “Então eu estou aqui para não pensar e este obriga-me a fazê-lo?”

Recordo um filme em particular intitulado “Dogville” e realizado por Lars von Trier. O minimalismo cénico, perfeito dentro do enredo e das emoções (fortíssimas) entre personagens, é algo difícil de digerir e que afasta a grande maioria do público. Apesar de ser uma obra magistral.

De igual modo, uma pintura ou fotografia que não nos conte tudo, deixando ao espectador o trabalho de imaginar o resto é algo que não agrada, merecendo pouco ou quase nada de atenção.

Será necessário que o trabalho exposto seja particularmente bem feito, estimulando fortemente as memórias ou emoções, para que mereça mais que uns segundos, poucos, de observação.

No caso específico da fotografia, que é um “recorte” do espaço/tempo que cercou o fotógrafo, ou o trabalho é explícito ou a primeira questão que é colocada é “o que é isto”. Logo seguida de “onde é” ou “quando foi”.

A necessidade do ser humano de tudo catalogar e organizar, aliada à preguiça de usar a imaginação para completar o que ali se não vê, leva a estas questões, ficando o espectador como agente passivo, incapaz de se relacionar emotivamente com o que assiste ou observa.  

E a actual forma de divulgação massiva da fotografia – a internete – incrementa esta forma de “não consumir” a imagem.

O tempo que a esmagadora maioria das pessoas usa para ver uma fotografia on-line é mais que diminuto. Poucos segundos mesmo. Que à distância de um click estão outras e outras e há que ver todas. E se não for explícita, completa, pouco exigente no que toca a imaginação e uso das nossas próprias experiências, rapidamente é esquecida, merecendo menos atenção que nada.

Aqueles que querem vingar no mundo da fotografia on-line vêem-se na obrigação de executar trabalhos bem explícitos, inequívocos, pouco provocadores da imaginação.

A subjectividade nas formas e conteúdos, nas técnicas e abordagens aos temas, o sair da normalidade, são formas de expressão que, em geral, estão a ser preteridas pela velocidade de consumo e a preguiça de digestão.


O fast-food invadiu a fotografia. E a pintura. E o cinema. E a escultura.


By me

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Modernices


 


“Pouco importa o que já fizeste se não te importares com o que ainda podes que fazer.”

 

Eu tenho uma pequena colecção de aparelhos de medida de luz.

Não gosto de lhes chamar de “fotómetros”, já que nem todos me apresentam resultados em “footcandle”. Alguns mostram-me “lux”, outros em Kelvin, outros ainda nem uma coisa nem outra, mas tão só os valores de exposição. Aliás, tenho mesmo um que não possui ponteiros nem célula e que é inerte, dependendo de uma mica graduada e da acuidade visual do utilizador.

Recentes ou bem antigos, incidente, reflectida, de largo ou estreito ângulo, continua ou instantânea, balanço e correcção de cor… tenho de quase tudo. Faltar-me-á um espectómetro, mas não tenho nem necessidade imediata nem meios para o comprar. Claro que nem aqui considero os sistemas de medição integrados nas câmaras.

Aquilo que ainda não tinha usado era a câmara de um telemóvel para aquilatar quantidade de luz. Surgiu agora a necessidade.

Uma conhecida recebeu e recuperou uma vetusta e ilustre câmara. Tudo agora funcional, excepto o “fotómetro” que, como seria de esperar, “morreu” de velho.

Lá lhe indiquei as velhas tabelas impressas no interior das embalagens de cartão em que se vendem os rolos fotográficos e que dão indicações preciosas, ainda que pouco precisas, sobre os ajustes de exposição em função das condições atmosféricas e mais uns trocos.

(É interessante verificar como é raro encontrar alguém que saiba da existência de algo impresso no interior dessas embalagens. E, a maioria dos poucos que sabem, nunca o leram ou ponderaram as informações lá contidas. Um pouco como com os manuais de instruções.)

Pois para a ajudar, que a compra de um “fotómetro” está, para já, fora dos planos dessa minha conhecida, sugeri algo de forma errada: algo nunca tinha usado.

Refiro-me a aplicações para telemóvel que medem a luz e nos dão indicações sobre como ajustar a exposição: sensibilidade, tempo, abertura, EV…

Sendo que não gosto de ter pontos de interrogação suspensos sobre a cabeça, mas antes exclamação ou reticências, tratei de ver o que se encontra on-line.

São mais do que esperava. Alguns usam a câmara como sensor, outros um dispositivo adicional. Optei por experimentar um da primeira opção.

Numa primeira abordagem, gostei dos resultados. Comparado com as indicações dadas por duas câmaras e três aparelhos de medida externos, pareceu-me dar resultados medianamente consistentes e fiáveis.

Criei agora o desafio pessoal de usar este método e fotografar com a minha DSLR para tirar as teimas de modo prático.

 

Duas notas, no entanto:

- Independentemente dos resultados que obtiver, não creio que medir luz com um telemóvel dê o mesmo prazer ou afecto que com um fotómetro ou exposímetro;

- Não irei juntar um telemóvel à minha colecção de aparelhos de medida de luz.


By me

Exercício de estilo




 Éramos três e todos ligados à fotografia, ao vídeo e TV e à escrita.

Das várias coisas que então partilhámos, e já lá vão umas dezenas de anos, recordo um exercício de criatividade, sugerido já não sei por quem.

Cada um de nós entregava a um dos outros uma fotografia feita por si e da sua escolha. Passado algum tempo, suponho que quinze dias mas não garanto, cada um apresentava ao terceiro a fotografia acompanhada de um texto, entretanto escrito. Novo ciclo de tempo e a foto e o texto eram entregues de novo ao primeiro, agora com uma nova fotografia a acompanhar. E quem recebia teria de novo um tempo limite para fazer um novo texto. E por aí fora até que algum de nós dissesse sobre o que tinha na mão: “Está completo! Não lhe acrescento nem uma virgula ou fotão”!

O exercício terminava aqui com três conjuntos de fotografias e textos evolutivos e de criação colectiva.

Nem para o texto nem para a imagem havia restrições. Poderia ser uma palavra, uma frase, um poema ou várias páginas de escrita “caótica”. E poderia ser em cores ou preto e branco, positivo, negativo ou diapositivo, fosse qual fosse o tamanho apresentado.


A Terra rodou milhares de  vezes e cada um de nós seguiu o seu rumo, aquém e além mar.  

Mas certamente que este exercício de estilo, esta diversão de comunicação de ideias e saudavelmente exigente, tê-los-á marcado como a mim.


Ainda hoje as imagens me provocam palavras, as palavras sugerem imagens e ambas as situações me levam a emoções.

E continua a ser um exercício interessante, ainda que agora a uma só voz, manter diariamente a relação palavra/imagem e imagem/palavra. Conseguir a ilustração certa, por vezes com tempos reduzidíssimos, ou a verborreia adequada a algo que vi e registei, consegue manter-me acordado e alerta, mesmo nas ocasiões mais apertadas.

Se o resultado é bom ou mau? Não sou juiz em causa própria, mas são incontáveis as vezes em que penso que poderia ter feito ou abordado o tema de outra forma.


By me

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Ortodoxias ou talvez não


 


Por vezes há que ser rigorosamente nada ortodoxo!

Aquela turma era um pouco mais “indisciplinada” que o habitual. Coisa que me agradava e agrada, já que nas áreas criativas a indisciplina é vital: há que ser indisciplinado na vida para deixar a criatividade crescer e ganhar raízes. Haverá que quebrar regras, mesmo que as de uma sala de aula, para ir mais longe.

Claro está que haverá sempre algum limite para este tipo de indisciplina. Em particular dentro de uma sala de aula, onde a “criatividade” individual não deve atrapalhar em demasia o trabalho do colectivo. Colegas ou professores.

Naquele dia, ou por ser primavera, ou porque as hormonas estivessem mais descontroladas, ou porque o fim de semana se aproximava, ou fosse lá porque fosse, a coisa estava mais difícil.

Os do costume, sentados atrás como habitualmente, estavam a ultrapassar as marcas. Eu bem tentava “acalmar as hostes”, com uns chamar de atenções, uns comentários mais incisivos, um levantar de voz… mas a coisa estava difícil.

Até que, a certa altura e já meio desesperado e não querendo usar das medidas disciplinares que o ambiente escolar permite, me lembrei disto: um apito que jazia num dos bolsos do colete, comprado uns dias antes para uma fotografia.

Peguei nele, pousei-o na mesa mesmo a meu lado e ficámos a namorarmo-nos por um pedaço. Até que, já sem outros recursos, o usei. Com força. A plenos pulmões. A ponto de até os meus ouvidos me doerem.

Fez-se um silêncio sepulcral naquela sala. Isso e um montão de olhos espantados virados para mim, a tentarem perceber que raio de maluquice me haveria ter atingido.

Quando os tímpanos deixaram de zumbir, expliquei à turma o que estava a acontecer, o como aqueles lá de trás estavam a impedir que os demais aprendessem e como esses mesmos estavam a impedir que eu fizesse o meu trabalho de os ajudar a aprender. E que havia e há momentos para a indisciplina e rebeldia, como já lhes havia demonstrado e até incitado, mas que outros havia e há em que o respeito pelos demais se sobrepõe.

Depois de uma pausa para digerir a situação, alguns deles fizeram exactamente aquilo que eu sabia que fariam: pediram desculpa aos colegas. Por meio de algumas gargalhadas que todos soltámos.

Por estranho que possa parecer a alguns mais incautos e que não conheçam este tipo de estudantes e adolescentes, o caso foi remédio quase santo. Durante algum tempo – semanas - quando a idade e a rebeldia os levava a excederem-se em sala, eram os outros que os lembravam do apito do maluco do prof JC. E entravam na normalidade livre que pretendíamos, sem peias nem mordaças, mas com respeito pelo trabalho do colectivo.

É evidente que nesse dia ouvi das boas dos colegas na sala de professores. Que o belo do apito se tinha ouvido em todo o edifício. E, explicadas as causas e as consequências, ficaram a olhar de lado para mim, uma vez mais. Pondo em dúvida a minha própria sanidade mental e a eficácia do método.

Mas certo é que se assistissem ao que se passava connosco portas adentro ou portões afora, e se verificassem os resultados no que a aprendizagem diz respeito, verificariam que a ortodoxia não será a melhor abordagem quando falamos em criatividade e descoberta de novos e pessoais caminhos.

 

Nota adicional: não encontrei uma fotografia do tal apito, que tenho por aqui algures.

Recorro a esta outra, também de arquivo. Acredito que se tivesse usado uma flauta, tocada lentamente e baixinho e mesmo que desafinado, o efeito teria sido o mesmo.

 

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terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Velharias


 


Duas velharias que tenho aqui por casa. Ambas quase sem uso que não a memória, mas sempre disponíveis para o que for preciso.

Acredito que a totalidade, ou quase, de quem isto vir reconhece a da esquerda. Um clássico pincel de barba. Tenho-o há mais de quarenta anos e, pelo uso que lhe dou, irá durar outros tantos. Pelos motivos óbvios.

Já o da direita… Quase que aposto em como menos de 1% de quem isto vir saberá reconhecer o objecto.

Trata-se de um “saca filme”, conhecido em inglês por “filme picker”. Serve para tirar o filme fotográfico de 35mm de dentro da respectiva cassete sem ter que destruir esta. Procure-se na web para saberem como funciona.

Usei-o em tempos e amiúde em laboratório a preto e branco. E, um destes dias, para ajudar uma conhecida no aprender a forma de carregar uma vetusta Leica M3, usando um rolo já fora de prazo e para estragar no exercício.

 

Já o como fiz esta fotografia…

Um candeeiro de mesa, por cima e um pouco do lado de lá do assunto; Um pacote de leite, aberto, espalmado e do avesso, do lado esquerdo, para atenuar, reflectindo, a sombra do pincel; uma folha de papel branco para atenuar a sombra do topo e pega do tabuleiro.

Não é necessário muito e dispendioso material para se fazer fotografia.

É imperioso, no entanto, vermos a fotografia antes de premir o botão.


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Vivemos numa sociedade em que pensar nos outros roça a inconstitucionalidade e a blasfémia.

Que os deuses nos protejam quando passar a dar direito prisão e fogueira.


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sábado, 6 de fevereiro de 2021

Seconic


 


A história é velha de quase quarenta anos.

Comprei este fotómetro a um amigo e mestre, já usado e em excelentes condições de funcionamento.

Usava-o ele, essencialmente, para fazer medições de luz incidente e tinha-lhe sido fornecido pela nossa empresa um ainda melhor. Vantagem minha.

Acontece que, já em casa, constato disparidades entre a sua leitura de luz reflectida e os resultados apresentados pela minha câmara. Estranhei e tratei de comparar as medições com outros aparelhos. Sempre a mesma diferença: um stop mais fechado em leitura reflectida. Em leitura incidente estava correctíssimo.

Não havia net como hoje nem os respectivos fóruns. E o manual de instruções, obtido com alguma dificuldade e sempre vital, não me fornecia nenhuma indicação numa primeira abordagem.

Mas a leitura atenta e interpretativa deu-me a resposta: tratando-se de um “fotómetro de estúdio” estava preparado para fazer medições directamente a partir do tom de pele e não de um cinzento com 18% de reflectância como eu queria e todos os outros aparelhos faziam. É interessante este método, supostamente dá resultados mais rápidos, mas é muito ambíguo, já que os tons de pele variam enormemente de individuo para individuo. Aliás, de zona do corpo para zona do corpo.

Resolvi a questão recorrendo ao espírito inventivo e de “desenrasca” que tão bem nos caracteriza:

Na grelha usada para medição reflectida, que aqui se vê entre os meus dedos, tapei alguns dos orifícios com fita preta. Tentativa e erro até os resultados serem os que queria. Bingo!

Até hoje matem-se fiel e constante nas suas medições, nunca me deixando ficar mal naquilo em que o usei.

O que acaba por ter piada é que há uns poucos  anos comprei um outro fotómetro, também “em segunda mão”. No caso específico um exposímetro, já que não indica quantidades de luz mas tão só a exposição a fazer com ela. Luz continua e flash, luz incidente e spotmeter. Tudo em um e com vantagem.

A verdade é que, em modo spot constatei a mesma variação de um stop quando comparado com outros aparelhos que possuo. A marca é a mesma, “Seconic”, e a minha memória acordou. O manual de instruções está na net e forneceu-me a confirmação do que suspeitava: feito para medir a luz na pele do modelo.

Sendo um aparelho digital (L-558), a sua re-calibração foi bem mais fácil e rigorosa, permitindo-me manter os métodos e resultados consistentes do que vou fazendo.

 

Saber interpretar aquilo que usamos ou fazemos e ajustá-lo à prática que temos é vital em tudo o que fazemos: fotografia ou vida.

A grande vantagem da fotografia é que vem com manual de instruções.


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quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Pagamentos




 As traseiras da casa onde me fiz homem davam para uma rua sem saída. Toda a rua era traseiras, excepto lá no fundo onde uns poucos de prédios, em forma de largo, davam o deu melhor para esta artéria.

Hoje é parqueamento diurno e nocturno de moradores e não só. As frondosas árvores de agora eram então raquíticos troncos eternamente ameaçados na sua sobrevivência pela seca e as bolas com que a miudagem as acertava, já fora da linha lateral definida pelo lancil do passeio.

Sei que a acústica era boa. Não apenas se ouviam bastante bem as vozes maternas chamando os rebentos para a mesa ou cama, como pelo canto e música que se ouvia.

Ficava esta rua no roteiro de dois homens que cruzavam a cidade, pedindo esmola. Mas não o faziam de porta em porta, estendendo a mão à caridade de quem as abria.

Um deles com o seu saxofone e o outro com a sua voz, davam-nos pequenos mas belos concertos de árias clássicas ou populares.

O instrumentista era cego, o vocalista não possuía o braço esquerdo. Mas juntos, na sua deficiência, suplantavam alguns palcos de fraques e toilletes janotas.

As janelas engalanadas de roupa a secar enchiam-se de miúdos e graúdos, para os ver e ouvir. Mesmo até ao topo do alto 13º andar, o 3º balcão daquela sala aberta para o céu.

Depois da sua actuação de uns bons quinze a vinte minutos, ajudada pela acústica da rua, o cantor circulava junto aos prédios, olhando para cima e para o chão. Recolhia os pedaços de papel com moedas que eram atirados pelas janelas dos moradores.

Rasguei várias páginas dos cadernos da escola.

Não eram esmolas! Eram antes o pagamento sincero de bons momentos que ficavam na memória. Pela raridade e pela qualidade.

Na minha mente, sempre imaginei o cantor como um deficiente da guerra do ultramar, mas nunca o soube ao certo. O que era garantido era que, de cada vez que passava, talvez de três em três meses, a sua voz acompanhava o cabelo: envelhecia e perdia volume e qualidade.

Até que deixaram de aparecer.

Hoje, quando vejo alguém a tocar na rua, de cesto, caixa ou lata no chão em frente, num convite à esmola, recuso.

Não dou!

Não dou uma esmola!

Pago!

Pago o prazer que tenho em estar uns minutos parado, ou mesmo que só de passagem, a escutar música ao vivo, inesperada, bem ou mal executada mas ali, ao vivo. Que me aquece a alma.


Não dou esmolas: pago um serviço!


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terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Utopias


 


Confesso que há coisas que me custam a entender. Ou talvez não.

Entre um limite que será a enormidade dos lucros das empresas produtoras das vacinas e etc. e o limite no extremo oposto que seria a expropriação das fórmulas e processos de fabrico, que tal pagar às farmacêuticas uma boa maquia para que disponibilizem o que possuem de conhecimentos e técnicas para que possam ser fabricadas por todos os laboratórios, incluindo os estatais e militares, para que todo o processo se acelere?

Diz-vos isto um fotógrafo que sabe que a invenção da fotografia, e respectivos direitos, foram oferecidos à humanidade para que dela se retirassem todos os benefícios. E hoje é o que se sabe.


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Escatologia


 


Há uns anos, nove para ser mais rigoroso, tive um incidente na via pública de que resultou ficar com uma mão partida.

Vítima inocente, e depois de falar com a polícia que compareceu em força, em várias viaturas e de armas aperradas, lá fui tratar da minha pobre mão, inchada e dolorosa, nos hospitais.

Sendo que não adianta chorar sobre leite derramado, tentei tirar partido do episódio e do que se lhe seguiu, com alguns relatos e fotografias, as possíveis para quem tem a mão esquerda engessada. Ou recorrendo ao arquivo, como foi o caso desta.

 

“Foi mais ou menos a meio da semana passada. E ela foi tão recheada de peripécias tão inverosímeis, que começa a ser difícil fazer uma cronologia exacta.

Em qualquer dos casos, estava eu numa sala de espera enorme de um serviço de consultas externas hospitalares. Esperava eu ser atendido e tratar da minha vida de doente e paciente. Serviu para mitigarmos reciprocamente a impaciência o ter encontrado uma amiga, que ali também esperava vez, já em tratamento continuado.

Quando o painel brilhou o meu número avancei, confiante. Asneira!

Era a minha vez, sim senhor, mas faltava-me um papel que deveria ter sido emitido por quem ali me havia enviado.

“Mas repare!”dizia eu. “Tem aí o exame radiológico, em formato de CD, onde constam todos os elementos, desde a referência ao número do episódio clínico ao meu estado de saúde. Se ligarem – telefone ou net – para o outro hospital, lhe darão as informações de que carecem.”

A senhora levantou-se, contrafeita, e foi lá dentro, falar não sei com quem. Regressou irredutível:

“Falta-lhe esse papel. Nada feito. Tem que lá voltar.”

Eu sei que estas pessoas, por muito simpáticas e afáveis que sejam – e aquela estava a sê-lo – mais não fazem que cumprir ordens.

“Chame lá o seu chefe que falo eu com ele.”

Veio uma chefa, ainda mais simpática e sorridente que a subordinada (por isso é que é chefa) mas tão ou mais determinada a cumprir determinações quiçá superiores.

Nada satisfeito com a expectativa de ter que percorrer cerca de 20km em três transportes públicos diferentes, para cada lado, só por causa de um papel e da “teimosia” daquelas duas, não resisti e proferi:

“Vou dizer uma palavra feia!”

Criei uma pausa teatral, dando tempo a que quem me ouviu – e foram vários – que arremelgassem os olhos e sustivessem a respiração, e disse bem alto:

“Penico!”

Se, naquele momento, ali se tivessem aberto uns quinze a vinte balões, não teriam feito mais barulho no seu expirar!

Insisti no absurdo da situação, na estúpida perda de tempo e dinheiro nesse meu ir e voltar, mas nada consegui. E acrescentei:

“Vou dizer outra palavra feia! Autoclismo!”

Os sorrisos foram mais francos e aliviados, mas inconsequentes no sentido que eu queria.

Antes de abalar, paciente impaciente e inconformado, para onde me tinham mandado, estive vai-não-vai para lhes atirar com o supra-sumo desta minha lista de impropérios, contendo todos os “Rs” que o calão escatologico de salão permite:

“Retrete!”

Guardei-o!

A imbecilidade Kafkaniana das regras dos Serviço Nacional de Saúde não merece que eu perca o meu bom-humor.

Se outros motivos não existissem, seria mais trabalho meu que deles, que é difícil tirar o sono a quem apenas cumpre ordens e dedilha um teclado.”

 

Confesso que hoje, noutras circunstâncias e apesar de não haver gesso envolvido nem zelosos cumpridores de normas e burocracias, me apetece enxugar as lágrimas e dar bom uso ao vernáculo.

Não adianta coisa nenhuma, excepto o aliviar da alma. E isso é importante que aconteça.


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