sábado, 28 de maio de 2022

Projectos




Quando cheguei estavam todas preenchidas. Todas as quatro colunas.

Eis que, da mesa ao lado se levantam os três (uma ela e dois eles) e começam a fazer um pequeno video com um deles em frente disto e, a meio, começam a apagar.

Pedi-lhes “Alto!, Deixem-me fotografar antes de apagarem!” fiz o registo e eles lá seguiram.

Faz parte de um projecto artístic/social, num dos jardins de Lisboa e, quando está todo preenchido, registam e deixam para novas respostas. Não percebi bem como irá acabar, com o somatório de todas as respostas ou afirmações, mas achei graça.

Passado ou pouco, e depois de lhes ter dito que talvez ainda vá tirar proveito disto daqui por umas semanas, num outro projecto em que estou envolvido, fiz a minha parte enquanto participante.

Somos uns para os outros, certo?


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sexta-feira, 27 de maio de 2022

Responsabilidades




Esta fotografia tem um pouco mais de dez anos e faz parte de uma série que vou mantendo, agora com menos frequência: "Um olhar".

Publiquei-a na altura com o seguinte texto:

 

“A menina das tintas

Era tímida e foi o cabo dos trabalhos para conseguir convencê-la a deixar-se fotografar. O que não consegui foi que me desse o seu nome. Sendo que estávamos numa loja de artigos de belas-artes, foi assim que a baptizei, disse-lho e aceitou-o. Ficou!"

Aquilo com que na altura não poderia contar foi o que aconteceu um ano depois:

Entrando na mesma loja, a Menina das Tintas veio ter comigo e perguntou o que havia eu feito com a fotografia que lhe havia feito e se a poderia ver.

A internete tem destas coisas e mostrei-lha de imediato. Gostou.

 

Uma demonstração para além de qualquer dúvida da importância que os fotografados dão às fotografias que lhes são feitas, muito mais que a importância que quem faz fotografia dá ao resultado do seu trabalho. As mais das vezes.

Que uma fotografia, mesmo que dela nos recordemos, é "mais um troféu", é “mais uma" fotografia.

Mas o fotografado, quer se trate de uma fotografia de estúdio ou uma ocasional algures fora dele, considera cada uma como especial. No fim de contas, está ali um pedaço dele/a. Naquele breve instante da obturação, foi o centro do mundo e ele parou para isso.

 

Convém que nós, que fazemos fotografia por profissão ou por devoção, tenhamos em conta o que pensa cada fotografado, o que sente cada fotografado.

E que respeitemos aqueles que se deixam fotografar e ajudam a encher a nossa coleção de troféus.


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quarta-feira, 25 de maio de 2022

Festas populares




Junho está à porta e com ele a época dos santos populares.

Em Lisboa, no Porto e por todo o país, as festas, procissões, arraiais e outras formas de comemorações popular regressam, desta feita sem as restrições impostas pela pandemia.

Igual tradição, ainda que mais recatada e de menor expressão, é a existência de altares domésticos, com uma vela ou lamparina acesa todo o ano, em honra do santo por quem se tem devoção. Não serão tantos como eram há cinquenta anos, mas ainda devem existir aqui ou ali.

Por mim, não tenho um altar montado permanentemente. Mas, em me apetecendo, lá vou eu dar uma voltinha pelos icones da minha devoção. E, se tiver paciência, monto um altar só para o registo.

Este já tem uns anitos. Faltando-lhe alguma modernidade tecnológica, mantem todo o espírito da coisa.

Divirtam-se com os vossos santos preferidos e com as vossas fotografias.


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terça-feira, 24 de maio de 2022

Super-abundancia




“Como Serge Daney gosta de dizer, “ficamos cegos diante da hipervisibilidade do mundo.” De tanto ver já não vemos nada: o excesso de visão conduz à cegueira por saturação. Essa mecânica contagia outras esferas da nossa experiência: se antigamente a censura era aplicada privando-nos de informação, hoje, ao contrário, consegue-se a desinformação imergindo em uma superabundância indiscriminada e indigerível de informação. Hoje, a informação cega o conhecimento.”

By Joan Fontcuberta, in “A Câmara de Pandora”


E eu acrescentaria:

O mesmo se pode dizer, sem sombra de dúvida, da fotografia.

De tanto vermos fotografias sofríveis ou medíocres, perde-se a noção do que é bom ou não, afinando os nossos padrões por baixo.

É aqui que livros, exposições e alguns sites, em que as escolhas podem ter duvidosa qualidade mas não costumam ser, servem para definirmos e aferirmos os padrões do que entendemos por bom e muito bom.

E por bom não entendamos apenas o clássico, as abordagens convencionais e os jogos de cor, luz e composição de acordo com as regras habituais.

A experimentação, o fazer diferente, o insólito abordar de algo que estamos fartos de ver mas que nunca imaginaríamos registado daquela forma, mesmo e principalmente que à margem do convencional, fazem parte do “bom” ou “muito bom” desde que falem connosco.

As mais das vezes, não é isto que encontramos nas redes sociais ou nas revistas massificadas de fotografia.

Vendo a quantidade quase que incontável de imagens fotográficas que são disponibilizadas todos os dias, quase que podemos ficar com a ideia que foram feitas por apenas um pequeno punhado de pessoas, de tão semelhantes e inócuas que são.

O ruído provocado pela superabundância de fotografias sofríveis, ou nem isso, impede-nos de ver ou reconhecer boas imagens.


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quarta-feira, 18 de maio de 2022

Sem título

 



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Tédio ou nem tanto




Quase ao acaso escolho um livro. É particularmente cedo na madrugada, apetece-me ler e vou à procura de algum autor que me conforte a alma. Ou que, pelo contrário, me tire do marasmo quotidiano do casa-trabalho-casa e das preocupações que me assolam a mente, em que pensar e criar é algo que acontece quase que como por acaso, nos intervalos das abjectas obrigações do sobreviver.

E fico na mão com um, já de lombada bem vincada, cheio de papéis com anotações de parágrafos ou páginas inteiras de referências: “A prática da arte”, de Antoni Tàpies.

Deixo que pelos meus dedos passem as folhas, sem que haja uma intenção específica de parar num ponto específico que não seja… Agora!

E dou com este parágrafo, na introdução da obra.

Mas um texto sem ilustração é-me difícil de publicar. E, sendo que já é tarde na noite, nem me apetece ir procurar no arquivo nem montar o que quer que seja a propósito. Assim, deixo o meu olhar vaguear pelo que me cerca aqui, neste meu canto, e prende-se ele na parede oposta. Acender luzes, pegar na câmara e fotografar, sem outro cuidado que o balanço de brancos foi acto de dois tempos.

A fotografia, já a haveis visto. O texto, é o que se segue, copiado mas quase que citado de cor:



“E nem falemos de todas as estéticas dos mercenários para acelerarem o consumo de certos produtos – hoje tão nervosos “à procura da respeitabilidade e de um estatuto finalmente artístico”, como diz Christiane Duparc; dos que hoje julgam que tem tanta importância um Gernica como um cartaz a anunciar umas calças ou uma marca de automóvel; dos estetas do “conforto”, material e espiritual, do ópio do falso “moderno” decorativo, da arte do xarope e do não dizer seja o que for que comprometa, que é o que mais adoram os vigilantes oficiais da cretinização sistemática da sociedade.”


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terça-feira, 17 de maio de 2022

Porquê




Nem sempre o tempo ou a inspiração do momento é suficiente para explanarmos tudo o que queremos ou como queremos.
Mas porque mo perguntaram, aqui fica o resumo de um sumário minimalista de tópicos das razões de fotografarmos.
Entenda-se que cada um dos temas abordados daria para muitos livros de grossa lombada: alguns que já li, outros que ainda não li e outros que eu mesmo ainda não acabei de escrever.

O fazer de fotografia pode ter vários motivos, uns mais bonitos que outros.
Em primeiro lugar, e para alguns, é um modo de vida, de garantir o pão de cada dia.
Mas pode querer apenas criar algo que não existe: um jogo de luz, cor e formas que, de algum modo, satisfaça a necessidade criativa de quem fotografa.
Pode ser apenas uma moda. Há anos, quando comecei, a fotografia era particularmente cara, o suficiente para ser chamada de “hobby”: algo que se faz por gosto mas que esgota os recursos materiais e intelectuais. Agora, qualquer um a pode fazer, que o equipamento de captura e processamento está ao alcance de qualquer um (ou quase). “E se um fotógrafo de renome pode fazer, porque não eu, que basta apontar e disparar?”, será o que muitos pensam ou sentem.
Pode ainda ser uma necessidade de comunicar, que outras formas não satisfaçam. Mostrar o que de belo ou de horrendo vemos é comunicar sentimentos.
Pode ainda ser um acto de exibicionismo, que ao mostrar o que fizemos podemos estar a dizer “vejam como penso e sinto isto!” E, com isto, afirmar a nossa forma de pensar.
Por outro lado ainda, a febre das tecnologias de comunicação fazem com que a imagem faça parte do nosso quotidiano. E comunicar sem se usar imagens é ser-se “out” nas modas modernas. Boas ou más, há que fazer fotografia, de preferência com câmaras ou caras ou vistosas. Será, no entanto, fácil de ver que os bons fotógrafos raramente se exibem falando do que têm mas tão só do que fazem.
Há também um outro motivo possível: cobiça! Não podemos possuir tudo o que gostamos: o pôr-do-sol, o carro, a pessoa. Vai daí, fotografa-se e fica-se com o seu ícone. Não será bem o mesmo, mas é o mais próximo possível.
Ainda se pode acrescentar outra razão: a vida actual é vivida em frenesim, rapidamente e esquecendo com facilidade os momentos que vamos vivendo. A fotografia permite, mesmo que inconscientemente, abrandar o tempo e “guardar para mais tarde recordar”. Claro que, com os Gb dos cartões, câmaras e sistemas de arquivo, não se recorda coisa nenhuma, que tantas se fazem que cada uma deixa de ter importância.
Por fim (ou talvez não) faz-se fotografia porque sim. Pelo mesmo motivo pelo qual se trauteia uma musiquinha, ou se fica parado a olhar uma borboleta no verão, ou porque se dá um beijo: porque nos apetece, nos dá prazer, nos satisfaz naquele pedaço de nós que não tem razão ou, como diria o poeta, “tem razões que a razão desconhece.”
Criar, para alguns, é uma necessidade afectiva; para outros, uma necessidade cultural; para outros ainda, uma necessidade social; e para outros, uma necessidade intelectual. O que diferencia uns de outros é que alguns fazem-no para serem mais que outros. Outros para serem mais que si mesmos.
Em qualquer dos casos, o mais importante será, creio eu, que encontremos satisfação no que fazemos. Porque o fazemos e não porque outros o fazem.

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segunda-feira, 16 de maio de 2022

Facilitismos




O acto de fotografar é hoje quase tão banal quanto o beber um copo de água.

Um pássaro, uma festividade, um acidente, um raio de luz e já está! Saca-se da câmara, como o cowboy da pistola, e dispara-se, perdão, fotografa-se.

O relativamente baixo custo das câmaras digitais, por vezes disfarçadas de telemóveis, e o quase nulo custo do apertar do botão do obturador - que nome se dará nas câmaras digitais? - faz com que talvez se produzam mais fotografias por unidade de tempo que cigarros fumados. Ainda bem!

Há cada vez mais gente a registar aquilo que vê - e por vezes aquilo que sente - o que permite que um maior número de pessoas tenha acesso a uma forma de expressão que os satisfaça.


Mas este facilitismo tecnológico e, porque não, económico, tem as suas desvantagens!

Por um lado, a fragilidade do seu suporte. As imagens apagam-se com enorme facilidade, com um simples delete, para poupar espaço nos arquivos. Ou ainda perdem-se com avarias imprevistas nos discos rígidos ou ópticos, desaparecendo assim o trabalho e a memória colectiva.

Por outro, o custo zero do disparo faz com que os fotógrafos produzam muito mais imagens de um mesmo assunto, cada uma delas menos pensada, ponderada.

“Clic, clic, clic, à velocidade do processamento da memória ou da prontidão do flash. Alguma delas estará boa. Depois logo se verá!”

A aprendizagem, através da “tentativa e erro” é francamente mais lenta. O guardar na memória electrónica daquilo que o sensor vê é feito com muito menos certezas e muito mais por acasos.


Talvez por tudo isto eu seja um pouco “conservador”!

Ainda que, no momento, quase só utilize equipamento digital e, com ele, siga um pouco “na onda” do acima descrito, sinto alguma nostalgia das câmaras clássicas de película. Em particular as de médio e grande formato.

O custo de cada imagem, tanto a nível do original como do laboratório, implicava algum grau de certeza no acto de fotografar. E a complexidade do equipamento e o seu peso e tempo usado antes e depois da tomada de vista eram tais que só se disparava o obturador pela certa. Gastar trinta ou mais minutos numa fotografia para “deitar fora” não é apelativo!

Estas câmaras, e o seu manuseio, tinham implicações - limitações, desvantagens, vantagens? - que nos levavam a pensar o assunto, na sua forma e conteúdo, que nos levavam a estudar a técnica e a estética de cada imagem antes de a fazer. Que nos obrigava a “VER” a imagem, antes de a obter.

Não significa isto que as imagens produzidas por estas câmaras e métodos fossem melhores que as actuais. A qualidade das fotografias - e do trabalho do Homem - não depende da ferramenta mas dele mesmo e do uso que lhes dá!

Mas levava a uma maior disciplina interior que hoje cada vez mais se vê menos.

No caso da fotografia, cada vez mais se vêem imagens que, sendo bastante razoáveis e tendo grande potencial, poderiam ser muito melhores se o fotógrafo tivesse “pensado” e “visto” a imagem antes de a fazer.

O facilitismo e a quantidade nem sempre - ou raras vezes - significam um aumento da qualidade na mesma proporção.


E contra mim falo, entenda-se!


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quinta-feira, 12 de maio de 2022

Telas e sombras




 Uma empena cega, ou uma parede absolutamente vazia, é a tela ideal para que o sol faça as suas obras de arte.

Todos os dias do ano diferentes, pese embora os objectos utilizados sejam os mesmos.

Desta empena e das sombras nela projectadas tenho dezenas de fotografias feitas. Volta e meia estou no local, ou para comer num restaurante favorito ou apenas de passagem, como foi este o caso. 

Desta feita, decidi desvendar o “mistério” do local, registando bem mais que apenas a obra de arte, incluindo o que a provoca.

Faz parte da minha aprendizagem (ou teimosia) de aprender a tirar partido de tal objectiva.

Que teimosia é o meu nome do meio.


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Sniper



 

Durante anos fiz uma piada com alunos e formandos.

Em vendo uma fotografia que me apresentavam, perguntava-lhes se tinham sido militares e atiradores especiais.

Claro que ficavam a olhar para mim, espantados com tal disparate. Mas eu explicava:

“Colocaste o assunto principal, o centro de interesse, bem no meio da imagem. Como se estivesses a espreitar por uma mira telescópica de uma espingarda”.

Claro que se riam, tal como eu. E continuava com a necessidade de espaço, ou ar, que todos e tudo necessitam. De seres vivos a objectos inanimados. Espaço esse que é resultado da sensação de segurança e tranquilidade dos seres vivos e da forma como usamos objectos inanimados, desde uma cadeira a uma caneta, passando por um automóvel ou um portão de quinta. Tudo tem um espaço próprio. Que devemos respeitar em condições normais, a menos que queiramos criar uma sensação de desconforto em quem vê a imagem, ou qualquer outra mensagem diferente do habitual.

Um destes dias, de conversa com um conhecido, passei-lhe para a mão a minha câmara. Espantou-se com o peso, olhou para aqueles botões todos e perguntou-me se podia fazer uma fotografia. Claro que sim, as que quisesse.

Quando as vi, disse-lhe a piada do costume, sobre ser atirador especial. Saíu-me o tiro pela culatra! Então não é que sim, que no seu tempo de militar tinha sido atirador especial, sniper se quiserem.

Rimo-nos e trocámos umas dicas sobre fotografia e tiro de espingarda, cada qual a falar do que conhece.

 

Claro que não estavam à espera que aqui mostrasse uma das fotografias em causa, pois não? Nem a pessoa fotografada foi questionada sobre a utilização da sua imagem, nem perguntei a quem fotografou se poderia usar o que fez.

Em alternativa, um auto-retrato. Juro que me foi penoso fazer este enquadramento!


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terça-feira, 10 de maio de 2022

Limitações fotográficas




De pouco adianta discutirmos as vituosidades deste ou daquele equipamento, desta ou daquela marca.

Todas elas fazem fotografia e ponto final.

O importante no fazer fotografia é quem está atrás da câmara: como vê e como tira partido da ferramenta que tem na mão.

Claro que há limitações: fotografia aérea com telemovel não será o de mais útil. Tal como o actual conceito de “street photography”, em que os transeuntes são fotografados sem disso se aperceberem, não será prático ou viável com grande formato.

O domínio da ferramenta e o conhecer as suas capacidades e limitações é importante, e isso faz parte de estar atrás da câmara.

Posso dar um exemplo, neste caso em primeira mão:

Adquiri recentemente ma objectiva extremo grande angular: 115º em full frame. Foi uma conjugação de oportunidades: estar no mercado, preço acessível e eu poder comprá-la.

Nunca fui grande fã de grandes ângulos de visão, pelo que isto, mais que um capricho ou oportunidade, foi um desafio: “Vou ser capaz de trabalhar com isto”.

Ainda não! O meu olhar ainda não se adaptou a esta forma de ver, ainda não domino a perspectiva que ela impõe e a forma de medir a luz em TTL, por preguiça de usar um fotómetro de mão, ainda é algo que não domino por completo.

Mas eu sou teimoso e vou “dominar o bicho”. À fé de quem sou que vou! Vai é levar mais tempo e mais tentativa e erro do que eu gostaria ou esperaria.

Até porque o problema não está na objectiva mas em mim. E isso posso ou devo resolver.


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Emoções




Uma sombra não tem emoções.

Existe apenas e na exacta medida da superfície onde se projecta, do objecto que se interpõe no caminho da luz e do tamanho da fonte que a provoca.

Uma sombra não tem emoções.

Será mais dura ou mais suave, mais incómoda ou mais simpática, mais longa ou mais curta. Até cobrir o mundo.

Mas uma sombra não tem emoções.

Uma sombra relata, com rigor geométrico, as posições relativas do plano de projecção, do objecto e da luz. Evidencia texturas e volumes, contrasta superfícies, simula tamanhos. Até opacidades.

Mas uma sombra não tem emoções.

Movimenta-se com o movimento do sol, do chão, do vento. Refresca ou atrapalha. Pode, até, criar sonhos.

Mas uma sombra não tem emoções.

E se eu, que trabalho com luzes e sombras, que trabalho as luzes e as sombras, as matizes, as nuances, não tiver emoções, mesmo perante uma sombra, serei eu mesmo uma sombra e não um ser vivo, que gosta e desgosta, que é a favor ou contra, que ama ou odeia, e que usa a sombra (que não tem emoções) para provocar emoções.

Fotografar é reagir emocionalmente a sombras (que não têm emoções).

Fotografar é usar as sombras (que não têm emoções) para provocar emoções.

Uma sombra não tem emoções! Um fotógrafo tem!

Se um fotógrafo não tiver emoções perante uma sombra (que não tem emoções), será ele mesmo uma sombra de um fotógrafo!


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segunda-feira, 9 de maio de 2022

Garrafa na linha




 Semiótica é uma palavra cara. E de significado meio obscuro. E torna-se mais difícil de entender quando se refere à imagem.

Mas a verdade é que funcionamos por símbolos, por códigos visuais de qualquer género. Reagimos aos sinais de trânsito, à expressão facial, à palavra escrita.

A fotografia veio complicar a coisa. Sendo uma representação factual de uma dada situação (mesmo com as pós-produção que se fazem) mais não é que isso: pessoas, objectos, locais, jogos de luz e sombra que existiram. E que a fotografia no-la mostra, cortando de todo um universo de espaço e tempo aquele bocadinho rectangular.

Assim, e não havendo códigos estritos, a leitura ou interpretação do que é mostrado depende, sempre, de dois factores vitais: o reconhecimento factual do que ali está e a reacção emocional de quem vê.

Por sua vez, a reacção emocional vai depender de dois factores, igualmente vitais: a experiência e a memória de quem vê e o relacionamento destas com o conteúdo factual e a chamada estética.

E é nesta que a porca torce o rabo. Que a estética é, também ela, resultante de códigos, uns escritos outros apenas interiorizados. Os conceitos estéticos dependem da cultura em causa, tempo e local. A interpretação que fazemos da gestão de espaço e contrastes de cor e luz não é mesma que se faz nos antípodas, onde a cultura “ocidental” ainda não é a dominante.

Só para dar dois exemplos práticos, veja-se como as cores do luto variam no globo. Ou como o sentido de leitura também varia com a geografia.

E quando coisas tão simples e entranhadas em cada ser humano variam, toda a eficácia da comunicação varia. E fotografia é comunicação.

A globalização vai estreitando conceitos. E estéticas. E o peso na globalização dos emissores vai formatando as estéticas, cingindo-as gradualmente a conceitos uniformes definidos pelos mais fortes ou massivamente difusores.


Fotografar é, para além da satisfação de quem o faz (material ou espiritual) uma forma de comunicação. Quando as fotografias são exibidas (na família, na imprensa, na net) há quase sempre a expectativa de algum tipo de aprovação, de que a mensagem nela contida seja reconhecida por quem a vê. Que, se a ponte entre emissor e receptor não existir, a comunicação não acontece.

Conhecer como as fotografias são lidas ou interpretadas pelos eventuais destinatários torna-se, assim, vital para que ela, a ponte, aconteça. Quais os códigos estéticos vigentes, como os interpretamos, quais as vivências predominantes e os sentimentos associados, até mesmo os códigos de conduta (escritos ou apenas aceites).


Sobra, claro está, uma outra forma de fotografar. Ou de escrever, ou de pintar, ou de esculpir, ou de bailar.

Aquela em que quem o faz ignora (por acaso ou propositadamente) todos esses códigos e faz apenas o que lhe dá na real gana. Ignora as reacções de quem vê, dado apenas ênfase à sua satisfação de criar algo. Mesmo que os demais, em sendo confrontados com isso, não interpretem o que ali estiver. E reajam negativamente ou nem sequer reajam.

Os que assim se exprimem pertencem, maioritariamente, a dois grupos: os mais jovens, que procuram formas de viver, expressão pessoal incluída, à margem ou em contraponto com a geração anterior, e aqueles que se não satisfazem com os academismos, as regras instituídas, mesmo que não escritas, os lentes que mais não fazem que dizer o que é bom e o que não é, tudo moldando em torno de um conservadorismo atroz.


Cabe a quem fotografa (ou se exprime por qualquer outra forma) decidir como o faz: se como forma de comunicação, seguindo os códigos e as semióticas existentes, se seguir tão só o que lhe vai na alma e estar pouco preocupado com as reacções de terceiros.  


Nota -  Não pretende esta fotografia ser exemplificativa de nada do que acima está dito. Mais não é que uma de muitas garrafas atiradas negligentemente para a via-férrea por quem aguarda, com ou sem paciência, por um comboio que o há-de levar ao seu destino. E, tal como a garrafa terá morto a sede de quem dela bebeu, também esta fotografia satisfez, no momento, a vontade de fazer o registo. Nada mais.


By me

domingo, 8 de maio de 2022

Copy/past




 Processo de representação gráfica efémero, pelo menos efémero enquanto popular, foi o da miniatura.

Em medalhões, broches, tampas de relógios e mesmo em anéis, os abastados ou não tanto traziam consigo a imagem de quem gostavam ou diziam gostar.

Em desenho de traço ou silhueta, pintada ou gravada em laca, esmalte ou prata, foi o antecessor da fotografia no que toca ao retrato portátil.

A sua divulgação surge nos finais do séc. XVIII e foi rapidamente ofuscada pelo novo processo - a fotografia – supostamente fiel e muito iconográfico. E mais barato.

Depois das primeiras experiências e invenções, bastava ser rigoroso quanto à aplicação das técnicas e fórmulas para que se satisfizesse e surpreendesse o cliente. E orgulhoso possuidor. E exibidor! E admirador!


Nos tempos que correm as miniaturas voltaram a ser populares.

Mas, ao invés de estarem gravadas num medalhão ou escondidas na tampa traseira de um relógio de bolso, estão gravadas electricamente nos bites e bytes das câmaras fotográficas, nos discos rígidos ou nas memórias dos telemóveis.

O ritual antigo de puxar por um fio de ouro e extrair pudicamente de dentro do colo feminino a imagem, ou o abrir a carteira de dentro da bolsa ou bolso e desdobrar o porta-fotografias de plástico ou, mais remotamente, de mica, morreu!

Hoje, saca-se do telele, liga-se o ecran e aí estão elas, as fotografias da namorada/o, rebentos ou netos. E, se se aceitar tecnologias mais pesadas, nada como recorrer a uma dessas “canetas-memória”, ligá-las a um computador e, por magia fosfórica, ver as imagens dos entes queridos. Ou ainda, pô-las a correr pelas auto-estradas E-mailicas ou sociais.

Claro está que os telemóveis são roubáveis e os sticks de memória perdíveis entre o prato de carne e a sobremesa. Mas são cópias, as imagens – pelo menos espero que o sejam. Não é grave! Haverá sempre a possibilidade de as copiar de novo, de criar novos ícones em tudo idênticos aos primeiros pelo simples processo de copy/past ou send.


Mas, no meio de toda esta tecnologia, nestas transferências energéticas de um integrado para outro, onde ficam os afectos?

A um óleo, pastel, miniatura esmaltada ou papel fotográfico, é possível atribuir valores afectivos simbólicos. Esta folha de papel representa aquela pessoa.

São únicos: a pessoa e o seu significante!

A matéria de suporte da imagem assume e fica impregnada de carinhos e dedadas. As tonalidades, os tamanhos e as texturas tornam-se tão íntimas quanto o corpo da pessoa amada.

E quando o suporte não existe de facto?

Quando a sua existência depende de um click e a energia se transforma noutra coisa qualquer?

Quando é repetível até ao infinito, sem que se perca um só detalhe ou electrão?

Serão os afectos também repetíveis?

Ou deletáveis?

É possível fazer copy/past de um sentimento? De um amor ou de um ódio? De um carinho ou afago?


Nesta sociedade de informação onde a imagem é rainha, não será que a sua super-abundância e facilidade de processamento e repetição um extinguir da sua importância?


By me

sábado, 7 de maio de 2022

Pudor




 Pudor!

É uma palavra que todos conhecem mas da qual raramente nos lembramos. Um destes dias ouvi-a num contexto curioso e fiquei com ela na cabeça.

Era a palavra que me faltava e que melhor descreve alguns dos meus sentimentos.

Tenho pudor em fazer certas fotografias.

Há mais de quatro décadas que faço televisão. Comecei ainda no tempo do preto e branco e da aventura do inicio da cor. Cem por cento, menos umas milésimas de unidade, das imagens por mim captadas, registadas e transmitidas foram de seres humanos.

No estúdio e no exterior, dentro e fora do país, anónimos ilustres e ignóbeis figuras públicas, ou qualquer outra combinação, como entenderem.


Em todas elas, de uma forma mais ou menos explícita, existiu uma cumplicidade no fazer dessas imagens. A câmara estava lá, bem visível, e o cidadão sabe que eu estou lá, o que estou a fazer e para quê. Uns exibem-se e quase que pagam para constar no registo ou transmissão, outros são apanhados ao correr da objectiva, mas nada há de sub-reptício.

Além do mais, mercenário que sou da imagem televisiva, não me sinto eu, enquanto indivíduo, a fazer aquelas imagens. Faço parte de uma equipa, de uma organização. A minha co-responsabilidade na captação e utilização das imagens que faço é limitada. Ainda assim, alguns escrúpulos que tenho tido ao longo dos tempos, têm-me trazido alguns amargos de boca.

Já enquanto fotógrafo a minha atitude tem sido diferente.

Raramente fotografo pessoas desconhecidas ou anónimas. Pelo menos ao ponto de estarem em evidencia no enquadramento ou de serem reconhecíveis.

Os trabalhos que tenho feito a pedido (não gosto do termo profissional) têm sido na área do teatro, da publicidade e da arquitectura, passando ao de leve pela reportagem.

Nestas circunstâncias, as figuras fotografadas fazem parte do evento e querem “ficar no boneco”.

Mas, sendo o Homem aquilo que quero retratar nas minhas imagens pessoais - aquelas que faço para minha satisfação exclusiva -, procuro fazê-lo sem que conste explicitamente delas.

Aquelas imagens de instantâneo – uma expressão, um gesto, um evento – que poderia fazer para meu prazer e deleite, não as faço. Tenho pudor!

Com conhecidos, próximos ou não tanto, sou mais atrevido. A cumplicidade existe, as pessoas em causa sabem o que sou e o que faço e, se bem que possam não “se fazerem à fotografia”, sabem que ela pode acontecer e comportam-se mais ou menos em conformidade.

Agora os estranhos, aqueles que apenas me conhecem de vista ou nem isso, vivem a sua vida ignorantes da possibilidade de eu os poder fotografar. São o que são, sem reservas, acanhamentos ou exibicionismos, alegres, tímidos, carinhosos ou bem pelo contrário, inconscientes que um gesto, uma expressão pode ficar registada para todo o sempre.

Da mesma forma que não espreito ou fotografo para dentro de janelas alheias, também tenho pudor em o fazer quando estão da parte de fora delas.

Esta minha atitude e sentimentos é tanto mais forte quanto mais “frágil” é a pessoa ou situação em causa. As misérias, materiais ou outras, tantas vezes vistas em espaços públicos, estão ali porque não podem estar em qualquer outro local privado.

Os pedintes, vagabundos, sem abrigo, catadores de lixo, para não citar todos, são-no, estão-no e fazem-no não por vontade própria mas como último recurso, muitas vezes já sem pudor algum porque não se podem dar a esse luxo. A seguir a este degrau…

Se eu soubesse, com certezas ou alto grau de probabilidade, que o eu fazer estas imagens iria de alguma forma melhorar-lhes a vida – na auto-estima, na fome, na saúde ou no conforto – esta minha invasão das suas intimidades públicas poderia fazer algum sentido.

Mas eu sei que do meu acto de fotografar nada de diferente lhes acontecerá. Apenas ficarei com mais um troféu de caça na minha galeria que, eventualmente, exibirei dizendo: “Vejam o que eu vi, sintam o que eu senti!”

Poderão dizer os fotojornalistas: “Mas uma das missões nobres do nosso ofício é denunciar as misérias do mundo e tentar com isso melhora-lo!”

É verdade que sim! Tal como eu o faço com a minha câmara de vídeo, que é o meu ofício.

Mas as minhas fotografias não se destinam a nenhuma publicação, de pequena ou grande tiragem. Faço-as porque me dá prazer fazê-las e, raramente, exibi-las, se as entendo como capazes e se me apetecer.

Se, de alguma forma, as imagens que faço e exibo podem melhorar o mundo, não sei, ainda que o tente. Mas prefiro fazê-lo mostrando os objectos, a luz, as atmosferas, as consequências e as causas e não as pessoas em si mesmas, não violando a sua privacidade pública.

Há uma palavra que define o que sinto e que me inibe de fotografar amiúde desconhecidos:


Pudor!


By me

quinta-feira, 5 de maio de 2022

Conversas




Dizer a um foto reporter ou fotojornalista que tenho uma malapata com o World Press Photo é complicado.

Por um lado porque esse concurso/certame/negócio é como que o prémio Nobel da fotografia. Ser por ele laureado será, talvez, a maior ambição de quem exerce o ofício.

Por outro, porque explicar o porquê não é nem fácil nem rápido.

A qualidade das fotografias nunca as coloco em causa. São sempre soberbas.

Mas os critérios que levaram à selecção do que foi a concurso e nos é exibido é que é particularmente duvidosa, do meu ponto de vista.

O concurso mostra-nos fotografias de reportagem para a imprensa. E o que é que a imprensa nos mostra, pelo mundo fora? Fotografias de temas chocantes, polémicos, violentos mesmo, ainda que por vezes não se veja uma gota de sangue. Desastres, acidentes, guerra, sofrimento, confrontos... é disto que a grande maioria da imprensa vive, vende e mostra.

Mas a fotografia de imprensa não é só isto. A imprensa especializada, quer se trate de moda, decoração, arquitectura, indústria, social ou o que quer que seja, também nos mostra fotografias de reportagem, nalguns casos de grande qualidade, e que são liminarmente excluídos do certame. Porque não fazem parte dos jornais de grande tiragem, das agências internacionais e ocupam um lugar minimalista nos escaparates.

E a vida registada pelos fotógrafos de imprensa é muito mais que apenas o lado negativo geralmente mostrado.

Claro que a isto haverá que acrescentar o motivo de a imprensa, ou os media em geral, venderem tantas imagens ou assuntos com violência. Implícita ou explícita.

E aqui temos que sair da fotografia em particular para entrar no ser humano, que é quem consome, e paga, o que é publicado. E os media são negócio, por muito romantizado que possa ser o ofício.

O bicho-homem passa a sua existência a lutar pela sobrevivência. Alimentação, abrigo, saúde, relacionamentos... bem mais de metade do seu tempo acordado é usado nisso. Nem sempre com sucesso, nem sempre satisfatoriamente. Aliás, as mais das vezes, frustrantemente. E mais ainda quando quando confrontado com uma sociedade de consumo que lhe impõe padrões de felicidade que passam pela compra permanente de bens ou serviços muitas vezes acima das suas possibilidades.

Os media, seja em papel, seja em electrónica, mostram-lhes que há quem esteja pior. Porque está em guerra, porque teve um acidente, porque está hospitalizado, porque a casa ruiu ou ardeu... e mostram-lhes com detalhes, pela palavra ou pela imagem, isso mesmo. Incluindo as fofocas e as lutas não sanguíneas, como o desporto ou a política.

E o ser humano médio, ao constatar que há quem viva pior, quem tenha menos sorte, quem seja vítima social ou natural, sublima com isso as suas próprias frustrações. “Afinal, a minha vida não é tão má quanto isso!”, “Há quem viva pior!”, “Que sorte que o incêndio não chegou aqui!”, “Ainda bem que ninguém da minha família usa aquela estrada!”, “Aqueles com que me identifico são os maiores!”.

E precisa dos media, com imagens, para provar isso e sentir-se menos mal na sua vida de contrariedades e dificuldades.

Os foto reporteres vendem para os jornais. E têm que satisfazer os clientes. Os jornais, por sua vez, seguem as preferências de quem os compra, ou não terão vendas nem anunciantes. E se os consumidores gostam de tragédias, escândalos, vitórias e derrotas, relatos de guerra ou de catástrofes... pois é isso que lhes vamos mostrar e contar. E é isso que compram a quem faz as fotografias que usam.

O Word Press Photo é o espelho dos assuntos preferidos pelos consumidores medios e que os media satisfazem. Não retrata toda a actividade dos fotógrafos que trabalham para a imprensa e que fazem excelentes trabalhos. Tanto fotografias soltas quanto trabalhos elaborados.

Quando este certame/concurso/negócio, que dá pelo nome de World Press Photo, se debruçar sobre toda a fotografia de imprensa e não maioritáriamente sobre as tragédias, as vitórias e as derrotas, terá em mim um visitante atento e frequente. Até lá, fico de parte e não o alimento com a minha presença e o preço do meu bilhete.

 

Explicar tudo isto a um fotógrafo de reportagem não é coisa fácil, já que estão mentalmente formatados para venderem o seu trabalho. E são honestos no que fazem e pensam.


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quarta-feira, 4 de maio de 2022

Normalidade




Foi coisa de que muito se falou desde há dois anos a esta parte: o novo normal ou a nova normalidade. Isto a propósito da pandemia e do que haveria cada um fazer para obstar à sua propagação: máscaras, confinamento, encerramento de comércios e serviços, bloqueios sanitários...

Convém, no entanto, recordar que “normal” advém de norma. E que norma é uma imposição, regra, lei. E se há uma expressão comumente usada, quando algo de incomum ou estranho ou insólito acontece é “Isto não é normal!”

Por outras palavras, o “isto” foge às normas, às regras, às leis, não é aceitável, foge à monotonia do quotidiano, infringindo decretos definidos num qualquer concilio de deuses e a que os Homens deve obedecer cegamente.

Mesmo em fotografia o termo normal é usado, como classificação de uma objectiva cujo  ângulo de visão se assemelhe ao do ser humano. Mais uma norma que eu contesto com veemência e que já por aqui expliquei.

E na óptica e no estudo da luz, tal como na arquitectura, existem normais. Aquela linha que é única e de excepção, que deve ser aceite como referência e que é perpendicular a qualquer outra linha ou superfície.

O normal, a norma, a regra... o quanto estes termos e conceitos obrigam, castrando ou limitando a criatividade tanto material quanto no imaterial e pensamento. Ou afectos.

Dir-me-hão que a normalidade fará falta nos relacionamentos sociais. Que serve de medida para que cada indivíduo saiba o que pode ou não fazer em função do que é normal. Que lima arestas comportamentais e melhora as interacções entre indivíduos ou grupos.

Será tudo isso e mais um par de botas! Mas eu não quero ser normal. Nem “não normal”. Quero e sou eu, com defeitos e qualidades, com bons e maus relacionamentos, com todas as idiossicrasias que cada ser possui e que lhe pertencem, sem ter que deixar de ser eu mesmo para ser “normal”!

Eu quero mesmo é que a normalidade, nova ou antiga, vá dar banho ao cão!


By me

domingo, 1 de maio de 2022

O rádio




Este rádio era de meus avós.

Viviam eles numa casa de lavoura, no limite da aldeia e a electricidade não chegava lá. Ainda. Portanto, o rádio funcionava a pilhas.

Quando por lá ia, nas férias de verão, era uma das minhas companhias das tardes infindas, em que o calor apertava cá fora, mas o fresco provocado pelas caiadas e grossas paredes convidava a uma sesta musical.

Quando eu por lá não estava, onze meses e tal por ano, o rádio era ligado apenas duas vezes por dia, para que se ouvisse o “teatro radiofónico”, o antecessor das telenovelas de hoje. Mas quando o catraio lá estava – eu – o consumo de pilhas era substancialmente maior, pelo que ficava eu encarregue, da minha semanada, de as pagar, compradas na venda da aldeia, onde se ía umas duas a três vezes por semana, em busca de algum feijão, arroz, talvez sal, e dois ou três dedos de conversa com os patrícios. Claro que havia o dia em que vinha o homem do peixe, na sua motocicleta e anunciado de longe pela sua corneta.

E porque é que o rádio, na minha ausência, só se ligava para o teatro radiofónico? Porque o que mais que lá se contava, as notícias, eram sempre iguais: alguma inauguração governamental, informações, raríssimas, sobre a guerra lá longe, nas colónias, a previsão meteorológica, o vencedor do festival da canção e, casos bem raros, algum discurso ao país do títere. Nada de importante, que a política estava limitada à União Nacional, o partido sempiterno no governo. Não podíamos saber o que outros pensavam, os que outros diziam, o que outros faziam. E votar, então, se bem que não obrigatório, era quase que inconsequente, que os resultados se sabiam de antemão: vencia a União Nacional.

 

Os tempos mudaram, a electricidade chegou à casa de meus avós, foi acrescentado ao rádio, já não sei por quem, um transformadorzito, eu deixei de lá ir de férias, que a adolescência queria outras aventuras, e a União Nacional deixou de existir.

Veio a Democracia, a possibilidade de podermos decidir sobre o nosso próprio futuro, de escolhermos os nossos governantes, de ouvirmos na rádio e na TV o que outros fazem, dizem, pensam.

O rádio está aqui, testemunha muda porque já não funciona, do que foi, do que é e da transição dos tempos.

E se hoje temos os que temos, vivemos como vivemos e sofremos o que sofremos, não culpemos o rádio, que ainda tem a capinha diligentemente costurada por minha avó.

Culpemo-nos a nós mesmos, que podendo saber o que outros pensam, dizem, fazem, continuamos a escolher – quando vamos escolher – os mesmos de sempre. Mantemo-nos – ou muitos de nós – apáticos, não optando por mudanças realmente sérias, mas tão só por pequeníssimas nuances, que mais disto ou mais daquilo acabam por ser mais do mesmo.

 

Já não nos juntamos, à luz do candeeiro de petróleo, a ouvir o teatro radiofónico. Das notícias, quando as ouvimos, preferimos as das catástrofes lá longe, preferencialmente, que nos sublimam os nossos problemas. Vibramos com as revoltas nos países ditatoriais, mas somos incapazes de resolver os nossos próprios problemas. Porque continuamos convencidos que o acto eleitoral está previamente decidido, entre o A e o B, e que, seja qual for o resultado, as consequências serão as mesmas.

 

Este rádio está mudo, agora. Mas, de cada vez que para ele olho, ali na estante, grita-me ele que as mudanças estão na minha mão – na nossa mão – quer nas urnas quer no quotidiano. E que devemos passar de meros ouvintes do teatro radiofónico para o palco dos acontecimentos. De passivos a activos!

Que mais que ouvir a rádio devemos fazer ouvir a nossa voz! E fazer cumprir a nossa vontade!

 

By me