quinta-feira, 10 de junho de 2021

Nostalgias




Poderia ter procurado na net. Afinal, ela está aí, na ponta dos dedos, com tudo e um par de botas. Bastaria ter escrito o nome, seleccionar imagens e pronto.

Mas não, não foi assim que fiz ontem.

Levantei-me do conforto da minha cadeira e fui procurar nas prateleiras. Eu sabia que tinha, apesar de não saber onde. Que uma arrumação pouco cuidada, fruto de umas mudanças domésticas, desorganizou os livros. O pior é que não me recordava da lombada, nem do título exacto, nem do tamanho, pelo que a busca durou um bom bocado mais do que esperava. Mas, tudo somado, foram ganhos para mim.

Recordei livros que já quase esquecera, memorizei algumas lombadas e capas, auxiliar precioso para buscas futuras, e criei um novo índice de títulos na minha cabeça, que durará quase tanto quanto o tempo que falta para os tornar a arrumar.

E porque me dei a esse trabalho, sabendo que estava tudo e mais um par de botas ao alcance da ponta dos dedos?

A questão fora levantada numa conversa on-line. Versava o trabalho de uma fotógrafa norte americana, bem conhecida pelo seu trabalho na FSA, durante a grande depressão: Dorothea Lange. O seu trabalho (conteúdo, forma, estética, ética, técnica…) fizeram dela um dos nomes grandes da fotografia.

Mas ela viveu e fotografou antes e depois disso e as suas imagens não ficaram reduzidas a uma boa mão-cheia de excelentes instantâneos a serviço da FSA.

Não só eu sabia disso como me apeteceu rever o seu trabalho. E, dele, escolher um para acrescentar ou ilustrar a conversa em curso.

Claro que um livro é redutor nas imagens exibidas, fruto das escolhas do autor. A web tem a vantagem de conter inúmeras, fruto das escolhas de todos os que para ela contribuem, seguindo os mais variados critérios.

Mas tem desvantagens terríveis!

Por um lado, a qualidade da reprodução. Escolha-se um fotógrafo conhecido, escolha-se uma sua imagem conhecida e observe-se como é tão variada a qualidade, não apenas nas resoluções como na gama de cores e cinzentos. O que nos leva a questionar sobre qual a mais próxima da vontade do autor.

Por outro, a qualidade e calibração do nosso próprio monitor. Não preciso de dizer muito sobre isto a quem produz imagens e as trata com teclado e rato.

Acrescente-se que, ao procurar na web uma determinada imagem de um determinado autor, os nossos olhos vão passando rapidamente por todas as que não queremos, as mais das vezes nem nos apercebendo das suas qualidades ou mesmo conteúdos. Nem meio segundo de atenção lhes damos, na voracidade da busca. E, convenhamos, encontrada que for a que buscamos, praticamente nem nos recordamos de quase todas as outras, não ganhando nada com a procura que não a satisfação do seu sucesso.

Já num livro… se a escolha na compra (ou consulta numa biblioteca) foi pela qualidade de impressão, todas elas nos satisfazem e serão de igual calibre.

Por outro lado, o simples facto de manusearmos um livro faz com que a nossa concentração no que vemos aumente. O varrermos cada página com o olhar, o tempo de mudar de página e varrer de novo, o tempo de os dedos tentarem seleccionar apenas a página seguinte e não várias em simultâneo… tudo isto permite que olhos e mente se apercebam bem mais de cada uma das imagens impressas. E paremos a usufruir do que quer que possamos sentir perante cada uma delas. Por vezes, e mesmo em livros já conhecidos, a redescobrir prazeres já esquecidos.

Pese embora a minha biblioteca não ser particularmente grande, contém o suficiente para me satisfazer na observação dos trabalhos de mestres e/ou desconhecidos, com o acréscimo de com eles aprender.

Claro que, na situação de ontem, encontrei a que procurava, deliciei-me com muitas outras e, de seguida, fui à web em busca de um exemplar que cumprisse os critérios qualitativos do exemplar em casa. Poupei trabalho e evitei ter que espalmar um bom livro do scanner. Que é frequente resultar em danos para o livro.

 

Quanto à imagem que agora exibo? Admito que é minha, com todos os defeitos que possui.

Sei que foi feita num tempo recuado, em que eu tinha a mania que era foto-repórter e que o mundo existia para que eu o capturasse, sem peias ou objecções.

Sei que foi feita numa fria manhã de um 24 de dezembro e que o que me incomodou foi ver um petiz, que talvez pouco mais soubesse que ler e escrever, a vender jornais para gaudio e satisfação dos demais. Numa época em que se publicavam matutinos e vespertinos, mas não neste dia.

Sei que não pedi para fotografar e que olhar que me lançou de seguida, apesar de eu ter sido discreto e nem sequer ter levado a minha SLR à cara, foi um ricto de um misto de satisfação por ter sido fotografado e profunda crítica pelo mesmo.

 

Vem tudo isto a propósito de ter acordado hoje com vontadinha. Vontadinha de sair com a minha DSLR e uma focal fixa e ir ver o mundo em preto e branco, coisa que não faço há muito. Que tenho para mim que o mundo é a cores, cada uma com o seu peso e provocando o seu tipo de emoções. E fotografar a cor é muito, mas muito, mais fácil e muito, mas muito, menos exigente.

Veremos, melhor: verei se ainda serei capaz de reduzir ou aumentar a luz e cor e o que elas nos mostra a apenas manchas de luz. E ser capaz de compor satisfatoriamente com isso.

 

Nostalgias dão nisto: textos longos. Mas o poder de síntese não é uma das minhas qualidades. As minhas desculpas.


By me

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