Excerto da obra “Modos de
ver” de John Berger.
Editado por “Edições 70”,
na colecção “Arte e comunicação”, Lisboa, 1999
“(…)
Uma imagem é uma vista
que foi recriada ou reproduzida.
É uma aparência, ou um
conjunto de aparências, que foi isolada do local e do tempo em que primeiro se
deu o seu aparecimento, e conservada - por alguns momentos ou por uns séculos.
Todas as imagens
corporizam um modo de ver. Mesmo uma fotografia. As fotografias não são, como
muitas vezes se pensa, um mero registo mecânico. Sempre que olhamos uma
fotografia tomamos consciência, mesmo que vagamente, de que o fotógrafo
seleccionou aquela vista de entre uma infinidade de outras vistas possíveis.
Isto é verdade mesmo para o mais banal instantâneo de família. O modo de ver do
fotógrafo reflecte-se na sua escolha do tema. O modo de ver do pintor
reconstitui-se através das marcas que deixa na tela ou no papel. Todavia,
embora todas as imagens corporizem um modo de ver, a nossa percepção e a nossa
apreciação de uma imagem dependem também do nosso próprio modo de ver.
(Por exemplo, Sheila pode
ser uma entre vinte pessoas; mas, por motivos pessoais, só temos olhos para
ela.)
As imagens foram feitas,
de princípio, para evocar a aparência de algo ausente. A pouco e pouco, porém,
tornou-se evidente que uma imagem podia sobreviver àquilo que representava;
nesse caso, mostrava como algo ou alguém tinham sido - e, consequentemente,
como o tema havia sido visto por outras pessoas. Mais tarde ainda, a visão
específica do fazedor de imagens foi também reconhecida como parte integrante
do registo. A imagem tornou-se um registo de como X tinha visto Y.
Constituiu isto o
resultado de uma crescente tomada de consciência da individualidade,
acompanhada de uma crescente consciência da história. Seria ousado pretender
datar com rigor este último avanço. No entanto, pode afirmar-se com certeza que
esta consciência existe na Europa desde o início do Renascimento. Nenhuma outra
espécie de vestígio ou de texto do passado nos pode dar um testemunho tão
directo sobre o mundo que rodeou outras pessoas, noutros tempos. Sob este
aspecto, as imagens são mais rigorosas e mais ricas que a literatura. Esta
afirmação não nega a qualidade expressiva ou imaginativa da arte, como se a
considerássemos uma mera prova documental; quanto mais imaginativa é a obra,
mais profundamente nos permite compartilhar da experiência que o artista teve
do visível.
Ainda assim, quando uma
imagem é apresentada como obra de arte, o modo como as pessoas olham para ela é
condicionado por toda uma série de pressupostos adquiridos sobre a arte.
Pressupostos que se ligam a:
Beleza
Verdade
Génio
Civilização
Forma
Estatuto Social
Gosto
etc.
Muitos destes
pressupostos não se encontram já ajustados ao mundo tal como ele é (o
"mundo tal como ele é" é mais do que um puro facto objectivo: inclui
também a consciência). Em desacordo com o presente, estes pressupostos
obscurecem o passado. Mistificam, em vez de clarificar. O passado nunca está
pronto a ser descoberto, reconhecido, exactamente como foi. A história
reconstitui sempre uma relação entre um presente e o seu passado. Por
consequência, o medo do presente conduz à mistificação do passado. O passado
não serve para se viver nele; é uma mina de conclusões que utilizamos para
agir. A mistificação do passado arrasta consigo uma perda dupla: as obras de
arte tornam-se desnecessariamente remotas; e o passado dá-nos menos conclusões
a completar com a acção.
Quando "vemos"
uma paisagem, situamo-nos nela. Se "víssemos" a arte do passado,
situar-nos-íamos na história. Quando nos impedem de a ver, estamos a ser
privados da história, que nos pertence. A quem lucra esta privação? Ao fim e ao
cabo, a arte do passado vem sendo mistificada porque uma minoria privilegiada
se esforça por inventar uma história que possa justificar retrospectivamente o
papel das classes dirigentes e porque tal justificação já não faz sentido em
termos modernos. Por isso, inevitavelmente, mistifica.
(...)
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