14 de Agosto de 2012. "O cano de
uma pistola pelo cu" e "As relações impossíveis: Economia real-
Economia financeira", eram os dois títulos do texto que Juan José Millás
publicava na secção de cultura do El Pais. Em poucos dias tornou-se
viral: 19000 shares no Facebook, 15 mil tweets, um país indignado. Hoje, o
Dinheiro Vivo publica em exclusivo - e pela primeira vez em português - o texto
sobre o capitalismo que incendiou Espanha
O cano de uma pistola pelo cu
Se percebemos bem - e não é fácil,
porque somos um bocado tontos -, a economia financeira é a economia real do
senhor feudal sobre o servo, do amo sobre o escravo, da metrópole sobre a
colónia, do capitalista manchesteriano sobre o trabalhador explorado. A
economia financeira é o inimigo da classe da economia real, com a qual brinca
como um porco ocidental com corpo de criança num bordel asiático.
Esse porco filho da puta pode, por exemplo, fazer
com que a tua produção de trigo se valorize ou desvalorize dois anos antes de
sequer ser semeada. Na verdade, pode comprar-te, sem que tu saibas da operação,
uma colheita inexistente e vendê-la a um terceiro, que a venderá a um quarto e
este a um quinto, e pode conseguir, de acordo com os seus interesses, que
durante esse processo delirante o preço desse trigo quimérico dispare ou se
afunde sem que tu ganhes mais caso suba, apesar de te deixar na merda se
descer.
Se o
preço baixar demasiado, talvez não te compense semear, mas ficarás endividado
sem ter o que comer ou beber para o resto da tua vida e podes até ser preso ou
condenado à forca por isso, dependendo da região geográfica em que estejas - e
não há nenhuma segura. É disso que trata a economia financeira.
Para exemplificar, estamos a falar da colheita de
um indivíduo, mas o que o porco filho da puta compra geralmente é um país
inteiro e ao preço da chuva, um país com todos os cidadãos dentro, digamos que
com gente real que se levanta realmente às seis da manhã e se deita à
meia-noite. Um país que, da perspetiva do terrorista financeiro, não é mais do
que um jogo de tabuleiro no qual um conjunto de bonecos Playmobil andam de um
lado para o outro como se movem os peões no Jogo da Glória.
A
primeira operação do terrorista financeiro sobre a sua vítima é a do terrorista
convencional: o tiro na nuca. Ou seja, retira-lhe todo o caráter de pessoa,
coisifica-a. Uma vez convertida em coisa, pouco importa se tem filhos ou pais,
se acordou com febre, se está a divorciar-se ou se não dormiu porque está a
preparar-se para uma competição. Nada disso conta para a economia financeira ou
para o terrorista económico que acaba de pôr o dedo sobre o mapa, sobre um país
- este, por acaso -, e diz "compro" ou "vendo" com a
impunidade com que se joga Monopólio e se compra ou vende propriedades
imobiliárias a fingir.
Quando o terrorista financeiro compra ou vende,
converte em irreal o trabalho genuíno dos milhares ou milhões de pessoas que
antes de irem trabalhar deixaram na creche pública - onde estas ainda existem -
os filhos, também eles produto de consumo desse exército de cabrões protegidos
pelos governos de meio mundo mas sobreprotegidos, desde logo, por essa coisa a
que chamamos Europa ou União Europeia ou, mais simplesmente, Alemanha, para
cujos cofres estão a ser desviados neste preciso momento, enquanto lê estas
linhas, milhares de milhões de euros que estavam nos nossos cofres.
E não são desviados num movimento racional, justo ou legítimo, são-no num
movimento especulativo promovido por Merkel com a cumplicidade de todos os
governos da chamada zona euro.
Tu e
eu, com a nossa febre, os nossos filhos sem creche ou sem trabalho, o nosso pai
doente e sem ajudas, com os nossos sofrimentos morais ou as nossas alegrias
sentimentais, tu e eu já fomos coisificados por Draghi, por Lagarde, por
Merkel, já não temos as qualidades humanas que nos tornam dignos da empatia dos
nossos semelhantes. Somos simples mercadoria que pode ser expulsa do lar de
idosos, do hospital, da escola pública, tornámo-nos algo desprezível, como esse
pobre tipo a quem o terrorista, por antonomásia, está prestes a dar um tiro na
nuca em nome de Deus ou da pátria.
A ti
e a mim, estão a pôr nos carris do comboio uma bomba diária chamada prémio de
risco, por exemplo, ou juros a sete anos, em nome da economia financeira.
Avançamos com ruturas diárias, massacres diários, e há autores materiais desses
atentados e responsáveis intelectuais dessas ações terroristas que passam
impunes entre outras razões porque os terroristas vão a eleições e até ganham,
e porque há atrás deles importantes grupos mediáticos que legitimam os
movimentos especulativos de que somos vítimas.
A economia financeira, se começamos a perceber,
significa que quem te comprou aquela colheita inexistente era um cabrão com os
documentos certos. Terias tu liberdade para não vender? De forma alguma.
Tê-la-ia comprado ao teu vizinho ou ao vizinho deste. A atividade principal da
economia financeira consiste em alterar o preço das coisas, crime proibido
quando acontece em pequena escala, mas encorajado pelas autoridades quando os
valores são tamanhos que transbordam dos gráficos.
Aqui
se modifica o preço das nossas vidas todos os dias sem que ninguém resolva o
problema, ou mais, enviando as autoridades para cima de quem tenta fazê-lo. E,
por Deus, as autoridades empenham-se a fundo para proteger esse filho da puta
que te vendeu, recorrendo a um esquema legalmente permitido, um produto
financeiro, ou seja, um objeto irreal no qual tu investiste, na melhor das
hipóteses, toda a poupança real da tua vida. Vendeu fumaça, o grande porco,
apoiado pelas leis do Estado que são as leis da economia financeira, já que
estão ao seu serviço.
Na
economia real, para que uma alface nasça, há que semeá-la e cuidar dela e
dar-lhe o tempo necessário para se desenvolver. Depois, há que a colher, claro,
e embalar e distribuir e faturar a 30, 60 ou 90 dias. Uma quantidade imensa de
tempo e de energia para obter uns cêntimos que terás de dividir com o Estado,
através dos impostos, para pagar os serviços comuns que agora nos são retirados
porque a economia financeira tropeçou e há que tirá-la do buraco. A economia
financeira não se contenta com a mais-valia do capitalismo clássico, precisa
também do nosso sangue e está nele, por isso brinca com a nossa saúde pública e
com a nossa educação e com a nossa justiça da mesma forma que um terrorista
doentio, passo a redundância, brinca enfiando o cano da sua pistola no rabo do
sequestrado.
Há já quatro anos que nos metem esse cano pelo
rabo. E com a cumplicidade dos nossos.
Texto: in “dinheirovivo.pt”