"Àquela hora não havia por perto outro local onde comer. O que via na montra e pela porta não lhe inspirava grande confiança, mas a fome mordia-lhe o estômago e o frio não ajudava. Entrou.
O cheiro a fritos era preponderante, mas isso não parecia incomodar os dois comensais isolados, que faziam parelha com o ambiente geral. Escolheu uma mesa, não muito próxima deles, e sentou-se.
Antes de olhar para a ardósia na parede onde se podia ler aquilo que a cozinha podia disponibilizar, olhou para a toalha. As manchas irregulares deixadas pelos clientes anteriores, sabe-se lá quando, competiam em contraste com o rectilíneo do xadrêz já pálido do tecido. Desejou que os guardanapos fossem de papel e que o copo estivesse como os guardanapos.
Ainda assim arriscou e pediu a quem estava atrás do avental e do bigode uma sopa e uma jardineira de vitela."
Esta é a grande vantagem da literatura sobre a imagem: por muito descritiva que possa ser, deixa sempre alguma coisa à imaginação de quem lê:
Estaria pouco vestido ou nevaria? Quantas mesas na sala? De que cor seria a toalha? Que garrafas, se algumas, existiriam atrás do balcão?
Há todo um mundo de perguntas que o texto não responde e que ficam ao critério do leitor encontrar as respostas. Em função das suas experiências pessoais, da sua imaginação ou de um qualquer capricho momentâneo.
A imagem, cinematográfica ou outra, não nos dá essa possibilidade. Cada detalhe da sala e seus personagens está ali, no ecrã ou no papel, esclarecendo todas as dúvidas e nada deixando por saber. Claro que há excepções, como seja o filme “DogVille”, mas os mestres quebram as regras e as rotinas.
A fotografia fica a meia haste. Tudo o que está em frente da objectiva é captado, com maior ou menor detalhe, nada deixando à imaginação. Mas não tem o factor movimento, em regra. Dos personagens ou da câmara. Donde apenas sabemos o que nos é mostrado.
Uma das técnicas de fazer o espectador interagir com o que vê é não lhe mostrar tudo. Indo mais longe, truncar parte do visível – pessoas, objectos, espaços – levando quem vê à tarefa de imaginar o que falta. Criar-lhe a curiosidade de completar o que está em falta.
Técnica difícil, esta. Principalmente nos tempos que correm. Que se a tentativa de estimular a imaginação for muito forte, com a rapidez de consumo do digital o espectador desinteressa-se com facilidade. Por outro lado, e pelo mesmo motivo, se for muito fraca não chega a provocar a curiosidade.
Alguns mestres na imagem – e eu não sou mestre – jogam com este instavel equilíbrio entre “o que mostro e o que não mostro” de forma magistral. O instinto, a prática, o pensar, o recurso às diversas técnicas de ocultar ou semi ocultar, fazem dos seus trabalhos obras primas.
É por dar trabalho ou ignorar o método que a esmagadora maioria das fotografias que vemos são sensaboronas. De tão completas, de tão esclarecedoras, de tão fechadas sobre si mesmas, não permitem que o espectador pense ou sinta. “É aquilo e mais nada”, “tomei conhecimento e é quanto basta”.
A arte, nas suas diversas facetas, pode ser completa. Mas pode e deve levar o espectador mais além do que aquilo que recebe. Provocá-lo, criar-lhe alguma instabilidade, sentimentos ou perguntas. Quando isso não acontece, não são fotografias: são fotocópias do circundante.
Os meus cinco cêntimos.
By me
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