terça-feira, 20 de setembro de 2022

Dejá vu




 A minha primeira intervenção pública sobre a matéria foi há quase quarenta anos e foi uma “barraca”!

Gravava eu uma peça de teatro, em estúdio, e quiseram que fizesse um conjunto de planos variados sobre um quadro. Não recordo nem o quadro e muito menos o autor (ele que me perdoe). Recordo, antes sim, que me recusei a fazê-lo!

Argumentei com a veemência da juventude e a certeza da razão que não deveria ser truncada a obra de um artista, neste caso um quadro. Não se estava a fazer um trabalho de crítica ou análise sobre a obra ou o autor mas tão só a aproveitar o trabalho intelectual de outrem com fins que nunca sonhados por quem o tinha feito e, ainda por cima, a destruir esse mesmo trabalho ao fragmentá-lo.

A discussão foi feia, tanto com quem realizava o trabalho televisivo como com os colegas seniores que comigo constituam a equipa de câmaras.

Mas não arredei pé nem cedi um milímetro que fosse! Eu não o faria. Eu não iria destruir um trabalho criativo, mesmo que para fazer um outro.

Acabei por ser afastado daquela gravação, substituído por outro operador que não tinha os meus escrúpulos e, durante uns tempos, estive “de castigo”, arredado dos trabalhos que davam gozo fazer e remetido para as emissões, chatas e monótonas.

Mas dormi tranquilo naquela noite e em todas as que se lhe seguiram. Da mesma forma que não aceito que trunquem, fraccionem, destruam aquilo que eu mesmo crio, não serei eu que o farei às obras de outros.


Os anos foram passando, eu envelhecendo e ganhando experiência (alguma, pelo menos) mas neste aspecto continuo tão seguro quanto o estava então. E, ao longo de todo este tempo, muitas têm sido as conversa, mais tranquilas ou mais acesas, com repórteres de imagem e jornalistas. Tentando convencê-los que num trabalho em que se informa da existência de uma exposição ou equivalente, em que não há, por parte de quem o faz, uma atitude crítica ou analítica mas tão só de divulgação, o respeito pelo trabalho autoral deve ser primordial. Inventem-se soluções estéticas ou técnicas que o respeitem, gaste-se mais tempo com dada imagem ou reportagem mas, por favor, respeite-se o autor e a sua criatividade.


Dificilmente, hoje, voltarei a ser confrontado profissionalmente com uma situação análoga. Cada vez menos se usa de tempos de antena para mostrar eventos culturais e menos ainda em estúdio, que eu não ando em reportagem. Mas se a situação se repetir, será um dejà vu com quase 40 anos!


By me

domingo, 18 de setembro de 2022

O saco


 


Recordo o local exacto onde o comprei: uma loja, uma das melhores lojas do ramo de então, na esquina da rua de santa Justa com a rua dos Douradores, em Lisboa.

Atraíu-me, então, o formato, a capacidade e o facto de ser de fabrico português.

Algum tempo depois descobri-lhe o ponto fraco: a correia e a forma como prendia no saco. Resolvi a questão como se vê, recorrendo aos sólidos materiais usados pelo exército, com um pouco de pele de seleiro e algum trabalho artesanal.

Remonta isto à primeira metade dos anos 80 do século XX. Uns quarenta anos, portanto.

Como tudo o mais, envelheceu. E se fez muitos km no meu ombro, cheia ou quase, foi ficando gasta aqui e ali. E eu mudei de estratégia, preferindo mochila nas costas a saco num só ombro. Uma inflamação no nervo ciático convenceu-me.

E passou a ser útil para guardar equipamento em casa. E para transporte quando a quantidade a levar assim o exigia. Depois... já nem isso, apenas para guardar. Com o passar do tempo e a chegada de novos sacos, mochilas e malas, passou mesmo a guardar aquilo que, tal como ele, já não estava em uso.

Agora, que há que fazer escolhas, é mais um a que darei a merecida reforma. Será colocado no exterior no contentor de lixo, esperando que ainda possa vir a ser útil a alguém. Para fotografia, vídeo ou o que quer que seja.

Se bem recordo, comprei-o pelo outono. É a chegar ao outono que dele me despeço.


By me

sábado, 17 de setembro de 2022

Absurdos




Não é fácil de explicar a quem defende a ecologia quase que como solução última para a humanidade. Ou a quem acha que a simetria é o pináculo da perfeição. Ou a quem pensa que o equilíbrio, interior ou exterior, será a manifestação divina de algum estado de graça universal.

Em boa verdade, o equilíbrio, a ecologia, a simetria, são invenções humanas. Retrógradas, conservadoras, rígidas como aço e anti-natura no seu máximo.

O universo não é simétrico. O universo não é equilibrado. Quer vejamos isto do ponto de vista cósmico, quer vejamos isto à escala humana.

Se o universo fosse equilibrado, não teríamos a expansão e contração galáctica. Nem as amibas teriam saído do seu ambiente aquoso. Nem o ser humano teria descido das árvores.

É no desequilíbrio, na intranquilidade, na ausência de simetria (que nem o corpo humano possui) que a evolução acontece, que melhoramos e nos melhoramos. É na insatisfação, no tentar atingir o horizonte planetário, nas super-novas, que algo de novo acontece. Terá sido o desequilíbrio que provocou a extinção dos dinossaurios e o surgimento de novas espécies. Nós incluídos. Terá sido algum desequilíbrio que terá provocado o famoso big bang.

A estabilidade, a simetria, o equilíbrio, serão algo que procuramos porque raro, como os diamantes. E só porque raro lhes atribuímos valor. Material ou não.

Sou apologista da ausência de equilíbrio, da instabilidade, da assimetria. Na vida, na estética, na evolução.

A balança é uma invenção humana! Absurda, claro.

domingo, 4 de setembro de 2022

Olhando para trás


 


Numa livraria tropeço num livro.

Não que estivesse no chão, mas porque fiquei cativo de alguém ter pegado num texto de Fernando Pessoa e ilustrado com fotografias.

De confessar que as fotografias não me atraíram por demais. Documentais quanto baste, nem más nem boas, do meu ponto de vista.

Agora o texto…

Passe-se a imodéstia, esta foi a fotografia que fiz logo a seguir a o ter lido. Vale o que vale, como as fotografias do livro. Mas é a minha interpretação:



“Entrei no barbeiro no modo do costume, com o prazer de me ser fácil entrar sem constrangimento nas casas conhecidas. A minha sensibilidade do novo é angustiante: tenho calma só onde já tenho estado.


Quando me sentei na cadeira, perguntei, por um acaso que lembra, ao rapaz barbeiro que me ia colocando no pescoço um linho frio e limpo, como ia o colega da cadeira da direita, mais velho e com espírito, que estava doente. Perguntei-lhe sem que me pesasse a necessidade de perguntar: ocorreu-me a oportunidade pelo local e a lembrança. «Morreu ontem», respondeu sem tom a voz que estava por detrás da toalha e de mim, e cujos dedos se erguiam da última inserção na nuca, entre mim e o colarinho. Toda a minha boa disposição irracional morreu de repente, como o barbeiro eternamente ausente da cadeira ao lado. Fez frio em tudo quanto penso. Não disse nada.


Saudades! Tenho-as até do que me não foi nada, por uma angústia de fuga do tempo e uma doença do mistério da vida. Caras que via habitualmente nas minhas ruas habituais - se deixo de vê-las entristeço; e não me foram nada, a não ser o símbolo de toda a vida.



O velho sem interesse das polainas sujas que cruzava frequentemente comigo às nove e meia da manhã? O cauteleiro coxo que me maçava inutilmente? O velhote redondo e corado do charuto à porta da tabacaria? O dono pálido da tabacaria? O que é feito de todos eles, que, porque os vi e os tornei a ver, foram parte da minha vida? Amanhã também eu me sumirei da Rua da Prata, da Rua dos Douradores, da Rua dos Fanqueiros. Amanhã também eu - a alma que sente e pensa, o universo que sou para mim - sim, amanhã eu também serei o que deixou de passar nestas ruas, o que outros vagamente evocarão com um «o que será dele?». E tudo quanto faço, tudo quanto sinto, tudo quanto vivo, não será mais que um transeunte a menos na quotidianidade de ruas de uma cidade qualquer.”