Na minha mesa de trabalho em casa, pequena que é, cabe pouca
coisa. O que acaba por ser uma sorte, ou ela estaria cheia com ainda mais
coisas úteis e inúteis do que está agora. Coisas que considerei importante
guardar temporariamente e que acabaram por ir ficando, coisas necessárias a que
acedo amiúde, coisas que ali coloquei por, no momento, não ter melhor local
para as colocar... coisas.
Pequena que é, a “secção” de “memórias” é igualmente
pequena, deixando à vista coisas igualmente pequenas mas que tenho por
importante naquilo que acordam na minha memória.
Agora entrou uma nova peça. Rara ou única, por ser uma
fotografia. E, ainda mais estranha, por não conhecer nenhuma das pessoas
fotografadas.
A dar fé em quem me vendeu a peça, numa feira de rua onde as
velharias da semana passada ganham dezenas de anos de idade, esta pequena
moldura e respectiva fotografia datarão do séc. XIX. Pois, eu também sou
aldrabão!
Se assim fosse p’la certa, não me pediria a michuruquice que
pediu, fazendo em cima disso um desconto “porque simpatizou comigo”. Ora batatas!
Em qualquer dos casos, acho que posso datar o objecto de
suficientemente antigo para que as duas crianças aqui representadas já não serem
vivas. Ou lá muito perto disso.
Desvaneceram-se da vida quase como que da fotografia.
Mas foram suficientemente importantes para que alguém
mandasse fazer uma fotografia de estúdio dos dois petizes e a emoldurasse.
Talvez que tenha estado anos a fio numa cómoda, num aparador ou numa pequena
mesa redonda coberta com uma toalha especial, mostrando os filhos ou sobrinhos
ou netos. E o olhar para este pequeno objecto (tem cerca de 5cm de largo) terá
feito recordar a quem o via aquelas crianças e as relações de afecto e de
família que existiam.
Desvaneceu-se quem emoldurou e lhe deu apreço,
desvaneceram-se os fotografados e a fotografia quase que se desvanece,
sobrevivendo firme a moldura. Já ninguém dá valor às anónimas crianças
especialmente fotografadas. Talvez algum neto, se isto encontrasse, dissesse “Olha!
Parece a avó em pequena!”
Mas tal como as pessoas desvanecem e as fotografias
desvanessem, também os objectos desvanessem, encaixotados ou engavetados até
serem desvanecidos de vez pelo novo proprietário do móvel e do imóvel, que nada
quer saber destes quase fantasmas visuais.
As fotografias digitais de hoje não desvanessem assim com
esta facilidade. A menos, claro, que se avarie um disco rígido ou um servidor
web se destrua. Conservam, enquanto existirem, as mesmas características
lúmicas, os mesmos contrastes, as mesmas cores e tons...
Mas terão estas modernas recebido com a mesma frequência e
intensidade os olhares afectuosos de quem as possui? Terão estes
permanentemente efémeros zeros e uns recebido afagos ou beijos enquanto se
limpa o pó do móvel? Terão estas imagens luminosas recebido o mesmo valor de “único”
quanto esta moldura com cristais de prata enegrecidos? Terão as fotografias
digitais a mesma carga afectiva quanto as impressas e emolduradas?
Não creio!
O digital na fotografia veio “democratizar” a sua produção, na
facilidade de acesso a todo o processo de captar e divulgar a imagem. Mas, em
contrapartida, veio retirar emoções no seu consumo ou observação, que a não
materialização e a superabundâcia do digital tornaram cada fotografia tão banal
e/ou importante a batata frita que se comeu na semana anterior.
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