domingo, 6 de novembro de 2022

A memória


 


Na minha mesa de trabalho em casa, pequena que é, cabe pouca coisa. O que acaba por ser uma sorte, ou ela estaria cheia com ainda mais coisas úteis e inúteis do que está agora. Coisas que considerei importante guardar temporariamente e que acabaram por ir ficando, coisas necessárias a que acedo amiúde, coisas que ali coloquei por, no momento, não ter melhor local para as colocar... coisas.

Pequena que é, a “secção” de “memórias” é igualmente pequena, deixando à vista coisas igualmente pequenas mas que tenho por importante naquilo que acordam na minha memória.

Agora entrou uma nova peça. Rara ou única, por ser uma fotografia. E, ainda mais estranha, por não conhecer nenhuma das pessoas fotografadas.

A dar fé em quem me vendeu a peça, numa feira de rua onde as velharias da semana passada ganham dezenas de anos de idade, esta pequena moldura e respectiva fotografia datarão do séc. XIX. Pois, eu também sou aldrabão!

Se assim fosse p’la certa, não me pediria a michuruquice que pediu, fazendo em cima disso um desconto “porque simpatizou comigo”. Ora batatas!

Em qualquer dos casos, acho que posso datar o objecto de suficientemente antigo para que as duas crianças aqui representadas já não serem vivas. Ou lá muito perto disso.

Desvaneceram-se da vida quase como que da fotografia.

Mas foram suficientemente importantes para que alguém mandasse fazer uma fotografia de estúdio dos dois petizes e a emoldurasse. Talvez que tenha estado anos a fio numa cómoda, num aparador ou numa pequena mesa redonda coberta com uma toalha especial, mostrando os filhos ou sobrinhos ou netos. E o olhar para este pequeno objecto (tem cerca de 5cm de largo) terá feito recordar a quem o via aquelas crianças e as relações de afecto e de família que existiam.

Desvaneceu-se quem emoldurou e lhe deu apreço, desvaneceram-se os fotografados e a fotografia quase que se desvanece, sobrevivendo firme a moldura. Já ninguém dá valor às anónimas crianças especialmente fotografadas. Talvez algum neto, se isto encontrasse, dissesse “Olha! Parece a avó em pequena!”

Mas tal como as pessoas desvanecem e as fotografias desvanessem, também os objectos desvanessem, encaixotados ou engavetados até serem desvanecidos de vez pelo novo proprietário do móvel e do imóvel, que nada quer saber destes quase fantasmas visuais.

As fotografias digitais de hoje não desvanessem assim com esta facilidade. A menos, claro, que se avarie um disco rígido ou um servidor web se destrua. Conservam, enquanto existirem, as mesmas características lúmicas, os mesmos contrastes, as mesmas cores e tons...

Mas terão estas modernas recebido com a mesma frequência e intensidade os olhares afectuosos de quem as possui? Terão estes permanentemente efémeros zeros e uns recebido afagos ou beijos enquanto se limpa o pó do móvel? Terão estas imagens luminosas recebido o mesmo valor de “único” quanto esta moldura com cristais de prata enegrecidos? Terão as fotografias digitais a mesma carga afectiva quanto as impressas e emolduradas?

Não creio!

O digital na fotografia veio “democratizar” a sua produção, na facilidade de acesso a todo o processo de captar e divulgar a imagem. Mas, em contrapartida, veio retirar emoções no seu consumo ou observação, que a não materialização e a superabundâcia do digital tornaram cada fotografia tão banal e/ou importante a batata frita que se comeu na semana anterior.

 

 By me

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