Viveu como pôde, onde pôde. Comeu como pôde o que pôde.
De Kiev a Vladivostok, foi cumprindo o seu ofício militar
até desistir e vir, embarcado ou não, até aqui onde a terra acaba e o mar
começa. Há vinte e tal anos.
Foi trolha, almeida, coveiro. Foi o que os outros não
quiseram, enquanto pôde. Casou e foi corrido, que o álcool é mau conselheiro.
Nunca se drogou.
Sonhava. Sonhava, muito timidamente, em ter uma companheira.
E sorria, enternecido e envergonhado, quando disso falava. Sonhava em regressar
à Ucrania e às divisas de capitão, “para ajudar, que aquilo está mau”. Sonhava
acordado, sabendo que estava a sonhar.
Rebelde a regras, como é apanágio nestes casos prolongados,
nunca se deu bem nos abrigos que lhe arranjaram. Conheci-o a viver num carro
velho. O apoio social internou-o num hospital e, quando regressou, tinham
roubado o carro e todo o conteúdo. Todos os seus bens. Contou-me, alguns dias
depois, que tinha encontrado uma das suas malas bem velhas no lixo. Vazia,
claro. Refugiou-se com uns papelões e paletes, num recanto pacato, a meia distância
entre um salão paroquial e uma sala de culto islâmica. Dizia que estava bem
acompanhado.
De dia parava por aqui, na entrada da lavandaria. Não
incomodava ninguém, lá dentro há cadeiras sem consumo obrigatório e o calor das
máquinas é reconfortante. Toleravam-no.
Encontrávamo-nos quase todos os dias por aqui, no cruzamento
da rua, as mais das vezes junto ao café-pastelaria. Amiúde era ele que se
aproximava, com o seu passo lento e sofrido. E entre uma moeda para um “café” e
um ou dois cigarros que partilhávamos, falávamos. De deus, de militares, da
vida e dos ofícios, das pessoas. Algumas vezes, em indo eu à lojinha por um
artigo de última hora para o meu almoço ou jantar, convidei-o a entrar e
escolher o dele. Acedia relutante e sempre comedido no que trazia. Nunca foi
vinho.
Mal visto pela vizinhança, poucos éramos os que lhe dirigiam
a palavra. E os demais quando dele falavam sempre foi com sete pedras na mão. E
foi de uma dessas bocas que hoje fiquei sabendo que as sirenes que ouvi de
manhã eram para lhe vir buscar o corpo.
Creio que este é o único epitáfio que o Pedro terá.